quinta-feira, 6 de março de 2014

Retentiva duas vezes

A Retentiva que, num ritmo muito seu e com as características que se lhe conhecem desde o seu início em Dezembro de 2009, passou agora a ter uma versão, ou extensão, aqui.

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Preâmbulo às instruções para dar corda ao relógio

Pensa nisto: quando te oferecem um relógio, oferecem-te um pequeno inferno floreado, uma corrente de rosas, um calabouço de ar. Não te dão somente o relógio, que contes muitos e bons e esperamos que dure porque é de marca boa, suíço com âncora de rubis; não te oferecem somente esse pedreiro laborioso que atarás ao pulso e passearás contigo. Oferecem-te – não o sabem, o terrível é que não o sabem –, oferecem-te um novo pedaço, frágil e precário, de ti mesmo, algo que é teu, mas que não é o teu corpo, que tens de atar ao teu corpo com a sua correia, como um bracinho desesperado dependurando-se no teu pulso. Oferecem-te a necessidade de dar-lhe corda todos os dias, a obrigação de dar-lhe corda para que continue a ser um relógio; oferecem-te a obsessão de dar atenção à hora exacta nas montras das joalharias, no anúncio da rádio, no serviço telefónico. Oferecem-te o medo de perdê-lo, de que to roubem, de que caia ao chão e se parta. Oferecem-te a sua marca, e a segurança de que é uma marca melhor do que as outras, oferecem-te a tendência de comparar o teu relógio com os demais relógios. Não te oferecem um relógio, és tu o oferecido, é a ti que oferecem para o aniversário do relógio.

Júlio Cortázar [1914-1984], Historias de Cronopios y de Famas, 1960.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Seleccionar! Seleccionar!

A preocupação da verdade, do retrato parecido, é a doença da nossa literatura. A preocupação da verdade é inimiga da verdade. A verdade não gosta que a espreitem. O excesso de pormenores embrulha a concepção, a intenção. Já que não podemos simplificar a vida, simplifiquemos a literatura. A literatura, como a vida, está atravancada. Há que descongestioná-la: um só quadro numa parede, dois ou três móveis em cada sala. Simplifiquemos! Simplifiquemos! A falta de espaço é cada vez maior. Há que fazer peças com poucas personagens, romances com poucas páginas, telas com poucas tintas. Seleccionar! Seleccionar! Escrever muito é fácil. Escrever pouco é heróico, muitas vezes. Poucos escritores têm essa coragem.

António Ferro, Leviana, 1921

domingo, 5 de janeiro de 2014

Eusébio

Uma coisa me consola, Eusébio. É que não fui eu quem cobriu Você de adjectivos, de apodos, de cognomes mais ou menos imaginosos. Não fui eu quem disse que Você era a pantera, o príncipe, o bota de oiro, o relâmpago negro, o coice para a frente, o astropata. Também não fui eu quem disse que o seu nome era Eusébio. Dar o Eu a Eusébio, que pretensão! Derive, derive e vire, vire e atire sem parança, Eusébio, seu genial tragalhadanças!

Alexandre O'Neill

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Trieste e una donna

xxxxxxxxxxxxPara a Teresa, em Trieste.

Tre Vie

C’è a Trieste una via dove mi specchio
nei lunghi giorni di chiusa tristezza:
si chiama Via del Lazzaretto Vecchio.
Tra case come ospizi antiche uguali,
ha una nota, una sola, d'allegrezza:
il mare in fondo alle sue laterali.
Odorata di droghe e di catrame
dai magazzini desolati a fronte,
fa commercio di reti, di cordame
per le navi: un negozio ha per insegna
una bandiera; nell'interno, volte
contro il passante, che raro le degna
d'uno sguardo, coi volti esangui e proni
sui colori di tutte le nazioni,
le lavoranti scontano la pena
della vita: innocenti prigioniere
cuciono tetre le allegre bandiere.

A Trieste ove son tristezze molte,
e bellezze di cielo e di contrada,
c’è un erta che si chiama Via del Monte.
Incomincia con una sinagoga,
e termina ad un chiostro; a mezza strada
ha una cappella; indi la nera foga
della vita scoprire puoi da un prato,
e il mare con le navi e il promontorio,
e la folla e le tende del mercato.
Pure, a fianco dell'erta, è un camposanto
abbandonato, ove nessun mortorio

entra, non si sotterra più, per quanto
io mi ricordi: il vecchio cimitero
degli ebrei, così caro al mio pensiero,
se vi penso i miei vecchi, dopo tanto
penare e mercatare, là sepolti,
simili tutti d'animo e di volti.

Via del Monte è la via dei santi affetti,
ma la via della gioia e dell'amore
è sempre Via Domenico Rossetti.
Questa verde contrada suburbana
che perde dì per dì del suo colore,
che è sempre più città, meno campagna,
serba il fascino ancora dei suoi belli
anni, delle sue prime ville sperse,
dei suoi radi filari d'alberelli.
Chi la passeggia in queste ultime sere
d'estate, quando tutte sono aperte
le finestre, e ciascuna è un belvedere,
dove agucchiando
o leggendo si aspetta,
pensa che forse qui la sua diletta
rifiorirebbe all'antico piacere
di vivere, di amare lui, lui solo
;
e a più rosea salute il suo figliolo.
Umberto Saba, Trieste e una donna, 1912
 
Três Ruas
Há em Trieste uma rua em que me espelho
nos longos dias de ensimesmada tristeza:
chama-se Rua do Lazareto Velho.
Entre casas como hospícios antigas e iguais,
tem uma nota, uma só, de leveza:
o mar ao fundo das suas ruas laterais.
Perfumada de alcatrão e de especiarias
dos armazéns desolados defronte,
faz comércio de redes, de cordoarias,
para navios: numa loja numa tabuleta espreita
uma bandeira; no interior, voltadas
para o passante, que raro lhes deita
um olhar, de inclinadas e pálidas feições
sobre as cores de todas as nações,
as que trabalham expiam as penas
da vida: inocentes prisioneiras
cosem sem alegria as alegres bandeiras.
Em Trieste onde a tristeza tanto conta,
e há beleza no céu e na urbana desmesura,
há uma ladeira que se chama rua do Monte.
Começa numa sinagoga,
e termina num claustro; a certa altura,
tem uma capela; e perto a negra voga
da vida se pode descobrir de um prado,
e o mar com os navios e o promontório,
e a multidão e as tendas do mercado.
Depois, ao lado da ladeira, há um campo-santo
abandonado, onde nenhum mortuório
entra, não se sepulta mais, tanto quanto
me lembro: o velho cemitério
dos judeus, por que sinto um fervor sério,
e penso que lá estão meus antepassados, depois de tanto
penar e negociar, sepultados,
todos no rosto e na alma irmanados.
Rua do Monte é a rua dos santos afectos,
mas a rua da alegria e do amor
é sempre a Rua Domenico Rossetti.
Este verde bairro suburbano,
que perde dia a dia a sua cor,
que é cada mais cidade e menos campo,
conserva ainda o fascínio dos seus augustos
anos, do seus primeiros chalés dispersos,
das suas raras filas de arbustos.
Quem nas noites de fim de verão por ela erre,
quando estão abertas todas
as janelas, e cada uma é um belveder
onde cosendo ou lendo se quer ver a hora passada,
pensa que talvez aqui a sua amada
refloriria ao antigo prazer
de viver, de amá-lo, só a ele, com carinho:
e com mais róseo parecer o seu filhinho.
(trad. Umberto Saba, Poesia, José Manuel Vasconcelos, Assírio e Alvim, 2010)

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Gregor Von Rezzori por Claudio Magris

«Era uma vez, era uma vez o dia em que quis lançar um olhar sobre o futuro. Nada mais do que um pequeno olhar. Após algumas visões preliminares daquilo que, muito rapidamente, deveria ainda vir do passado, perdi toda e qualquer curiosidade pelo dia de amanhã. Aprendi que o que tem de vir, vem. O que tem de acontecer, acontece. Isto é assim, e ultrapassa-me. O que me deixa pouco poder de decisão em relação ao momento que se segue. Digo: esse instante que se segue - cada instante que se segue - transborda de fatalidade. O que sempre escolhi após madura reflexão está destinado a ter consequências de que não prevejo os meandros. Elas são determinadas pelo tempo. Implantam-se nele e nele se perdem como tudo o resto. A única prova de que alguma coisa se produziu é podermos contá-la. O mundo é um formidável sótão de contos sobre aquilo que já foi contado. Tudo que foi, foi-o como foram os sáurios. Era uma vez.»


Assim se inicia o livro Mir auf der Spur, de Gregor Von Rezzori (Sur mes traces, trad. Pierre Deshusses, Editions du Rocher/Le Serpent à Plumes, col. Motifs, 2006). Citar Rezzori, autor que comecei a ler em circunstâncias particularíssimas que não vem ao caso contar aqui e que consta há muito da lista de autores referidos neste blogue, vem agora a propósito do livro de Claudio Magris, recentemente editado em português (Alfabetos, trad. Antonio Sabler, Quetzal), que, reunindo textos dispersos, recolhe o discurso proferido pelo autor triestino na entrega do Prémio Rezzori em 2007 («O Epígono Precursor»). Amigo de Georg Von Rezzori, Grisha para os amigos, Magris traça do autor um justo e pessoal retrato.

Rezzori não está publicado em Portugal. Pode ser que o prestígio de Magris contribua para que algum dia isso seja alterado.

sábado, 7 de dezembro de 2013

Imaginar, escrever

O que chamamos literatura é a metaforização ilimitada da viagem - limitada - da vida. Não importa que esta projecção metafórica se realize a partir de um cenário imóvel, nem sequer que o seu artífice renuncie a toda e qualquer deslocação física: em todos os casos, o escritor viaja sob o impulso do imprescindível motor da imaginação. Sem esse motor, não existe qualquer possibilidade de criação artística. Poderíamos estar todos de acordo a este respeito. Recordemos, contudo, que todas as tentativas de iluminar o significado da imaginação se realizaram sempre, obrigatoriamente, em termos de viagem e, mais concretamente, recorrendo ao contraste entre a realidade empírica, quotidiana, do homem e «outra realidade» atravessada por um sem fim de trajectos que conduzem a todas as partes e, simultaneamente, a nenhuma. Imaginar é percorrer, à deriva, alguns desses trajectos. Escrever é tratar de superar a deriva através da ilusão de um rumo.

Rafael Argullol, «El "Viaje de viajes"» em Maldita perfección. Escritos sobre el sacrifício y la celebración de la belleza, Alcantilado, Barcelona, 2013.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Fármaco

Fausto é mais convincente, a partir da consciência moderna, quando se erige em discípulo de Bacon e, especialmente, quando confia na técnica como o principal fármaco do homem para afastar o pesadelo do isolamento cósmico. Porque, de facto, este fármaco só adquire pleno poder no momento em que o Deus espectral que nos ronda, e através da grande engrenagem de Newton, não só é tido como indemonstrável, mas é também declarado indesejável. A técnica é o sonho de autodeterminação do homem que coincide com a maior consciência de solidão.
Sob os impulsos deste sonho, a natureza chamada inanimada constitui um mero campo de experimentação. O máximo esplendor da utopia científico-técnica coincide com esta ideia, se bem que a moderna concepção matemático-experimental da natureza implique uma dupla repercussão sobre a imagem do homem. Por um lado, ao apresentar-se o cosmos como uma engrenagem perfeita, o conhecimento consiste em descobrir progressivamente as leis universais desta engrenagem. Por outro lado, ao ser esperançosamente factível a possibilidade deste descobrimento, o conhecimento deve facilitar, mediante a técnica, o domínio do cosmos. Conhecer é avançar até às leis ainda não reveladas, enquanto dominar é utilizar as leis já conhecidas. A «idade do progresso» converte o cientista em profeta e o engenheiro em messias.

Rafael Argullol, «La soledad después de Shakespeare», em Maldita perfección. Escritos sobre el sacrifício y la celebración de la beleza, Alantilado, Barcelona, 2013.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

O Filho do Guardião dos Órfãos

Se a literatura é uma ficção que nos fala de uma verdade mais profunda, sinto que o meu livro é um retrato muito exacto sobre como os princípios do totalitarismo devoram as coisas que nos tornam humanos: liberdade, arte, escolha, identidade, expressão, amor. E devido ao facto de poucas coisas acerca da Coreia do Norte serem verificáveis (para além de imagens de satélite e de testemunhos de desertores), isto parece ser um reino no qual o alcance imaginativo da ficção literária é o nosso melhor instrumento para descobrir a dimensão humana de uma sociedade tão fugidia.

Adam Johnson, autor de The Orphan Master's Son, em conversa com o editor David Ebbershoff.
Publicado pela Saída de Emergência em Janeiro de 2014 com o título Vida Roubada.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Virtuosismo

Desconcertante, audacioso e sem precedentes? Notas sem conta transmitidas no mais curto tempo possível? Um ribombar, soltado com entusiasmo? Isto soa a bravura pelo amor da bravura. Uma parte considerável do público agradecê-la-á com arrebatamento. Mas o estudo Romântico apontava mais alto. Desencadeado pelos Caprichos de Paganini, o tecnicamente novo e o nunca ouvido antes tinha de ser contrabalançado e justificado pela novidade musical, a coragem e a poesia. A seguir ao cume que são os estudos de Chopin, os de Schumann, Liszt e Brahms (Variações Paganini), bem como os de Debussy, Bartók e Ligeti, dão ao pianista a possibilidade de provar que, na sua interpretação, a música leva a melhor. O virtuosismo, a propósito, revela-se útil mesmo se não passarmos a maior parte das nossas horas de trabalho a lidar com estudos — na verdade, particularmente nesse caso.
Frequentemente, quando postos diante de sequências de escalas e sucessões rápidas de notas, os intérpretes não conseguem evitar tocar mais depressa. Há uma aceleração involuntária na interpretação de pianistas tecnicamente dotados — a menos que a sua musicalidade lhes fiscalize os dedos. Tocar demasiado depressa pode bem constituir um esforço físico menor do que cultivar uma disciplina que controle cada um dos dedos.


Alfred Brendel, A Pianist’s A to Z. A Piano Lover´s Reader, Faber and Faber, Londres, 2013.