Livros raros - 4
Livros raros não são apenas os que dificilmente se podem encontrar à venda ou de que apenas existem escassos exemplares. Livros raros são também aqueles que a sua natureza ou qualidade tornam raros.
xxxTenho o senhor José diante de mim, todo branco, com os socos nos pés e a camisa entreaberta no peito cheio de grenha cinzenta e vermelha como o monco de um peru. É assim que aparece todo esfarrapado. Olho para ele e para o casaco de remendos e tenho vontade de o abraçar. E não o abraço para não me perder o respeito. (Há-de me servir de muito o respeito quando estiver na cova!) Tem 80 anos e tudo desliza sobre ele como sobre uma trave. Nunca se altera. As vides estão a estragar-se - zango-me; ele só diz:
xxx- Vou alveitar. O ano não foi cadible.
Sabe lavrar, cavar, podar. E o que ele sabe tem séculos, o que ele diz tem séculos. são duas ou três ideias rudimentares e fórmulas de que se serviram os mortos para explicar a Vida e exprimir a Dor. Por isso o venero assim intacto e tremendo entre os montes denegridos.
xxxTodo o dia ralha com a mulher e ela com ele. Comigo é inalterável.
xxx- Porque não sulfatou as vides que se estragam?
xxx- Dilatei-me.
xxx- E agora onde vai?
xxx- Vou ali a um pouco...
xxxE segue o seu caminho com a enxada às costas. Quando lhe falo tem o ar de ouvir e aprovar, mas logo que volto as costas, é como se tivesse falado ao vento.
xxxEle é bronco e solene como os bois, ela é esperta e velhaca. A senhora Rosa, que fala fanhoso, todo o dia resmunga e diz das outras que não carregam nem lavram:
xxx- É uma mulher que não sai de trás das panelas.
xxxLevam horas a comer. Comer para o lavrador, que sabe o que lhe custa o pão, é um acto religioso. Moem e remoem devagar o caldo e a broa, com o respeito de nossos pais diante da mesa posta.
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Raul Brandão, excerto de «O meu caseiro», A pedra ainda espera dar flor. Dispersos 1891-1930, organização de Vasco Rosa, Quetzal, Lisboa, 2013.