Homenagem a Rubem Braga, ou A Indispensabilidade do Acordo Ortográfico...
xxxxxSão notas de minha última viagem a Portugal. «Devido ao rebentamento dum pneu de uma das rodas da retaguarda, despistou-se um autocarro...» - é assim que se conta, em Portugal, a história de um ônibus que derrapou. Ele pode ter colhido um peão (pedestre) na berma (acostamento) da estrada, ou um «miúdo (menino) que estava a jogar à bola». O corpo «encontra-se de velação (velório) hoje a partir das 16 horas».
xxxxxPagar a renda do andar é pagar o aluguel do apartamento. O avião não decola, descola, e não aterrissa, aterra; e o sujeito que vem consertar a pia não é o bombeiro, é canalizador. Diga betão no lugar de cimento, e prefira dizer caixilharias a alumínio, no lugar de esquadrias de alumínio. Sua geladeira deve ser promovida frigorífico e seu banheiro a casa de banho. O aquecedor é esquentador, e o exaustor é «de fumos»; manicure é manucura; e não chame um empalhador, e sim um empalheireiro de cadeiras. Caminhão é camião, e quando ele bate não bate, embate; seu motorista é camionista. A casa (mobilada e não mobiliada) vende-se com «o recheio». Oferecem-se marçanos e turnantes, e mulheres a dias. Lanterneiro é mais logicamente bate-chapas e cardápio é ementa; esquadra é a delegacia da polícia. Quando lemos que «a equipa deixou o relvado depois de fazer o golo da igualdade», isso dá para entender. Caixa postal é apartado, aparelho de rádio é telefonia, parada é paragem e pedágio é portagem; carona é boleia, autoclismo é descarga da latrina, que não é latrina, é retrete. Panamenho é panamiano. Oran é Orão, Moscou é Moscovo, loteria é lotaria, bolsista é bolseiro, romaria é romagem. Leningrado é Leninegrado, suéter é camisola, e meia de homem é peúga, jazida de minério é jazigo, trecho da estrada é troço, mamão é papaia, troco é demasia, presunto cozido é fiambre, sorvete é gelado, travão é freio, marcha a trás é marcha à ré, band-aid é penso, e durex é fita-cola, bonde é eléctrico, berlinde é bola de gude (mas é masculino: jogar ao berlinde), cabedal é couro. A madeira é cortada na serração e não na serraria, a estrada não é asfaltada, é alcatroada, a sopa não esfria, arrefece; tomada de electricidade é ficha, nota oficiosa quer dizer nota oficial, estoque de mercadorias é existência, e liquidar é vender ao desbarato; a guimba ou bagana do cigarro no Brasil é beata em Portugal, e a equipa não deixa a concentração para fazer uma excursão, deixa o estágio para uma digressão; papel carbono é químico, não se diz que um sujeito é monarquista, diz-se que o gajo é monárquico.
(...)
xxxxxEm uma crônica recente dei exemplos de diferenças usuais da linguagem em Lisboa e no Rio. Enviei essa crônica ao meu amigo Irineu Garcia que está morando em Lisboa. Ela manda, a meu pedido, um listinha suplementa de palavras que estranhou lá. A que lhe parece mais curiosa é «ardina» no sentido de vendedor de jornais, «jornaleiro». Outra que também lhe pareceu estranha é «patilha», no lugar de «costeleta» de cabelo, que é um brasileirismo; se você disser ao barbeiro para ele diminuir a sua costeleta ele não entenderá. O curioso é que «patilha» parece ser gíria, pois no Morais a palavra não aparece no sentido capilar, no sentido de «suíças».
xxxxxPortuguês antigo, que lá continua em uso, é «paródia», no sentido de farra ou pagodeira, quando no Brasil é apenas imitação burlesca de alguma coisa.
xxxxxHá diferenças conhecidas de todos, como «comboio» que é o nosso «trem», «carruagem» que é o nosso «vagão», e «caminho de ferro», que é a nossa «estrada de ferro», mas a nossa «baldeação» lá é «transbordo», coisa menos sabida.
xxxxxSe você entrar em um teatro com seu «chapéu de chuva» (forma muito mais usada que o «guarda-chuva») é obrigado a deixá-lo no «bengaleiro», que é o nosso «chapeleiro». Isto ao Irineu parece elegante, e ele fica a imaginar se o seu querido Fernando Pessoa usava bengala; acha que sim.
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xxxxx«Ventoinha» é o nosso «ventilador», e «papeleira» é aquela «escrivaninha» de tampa inclinada e gavetas para guardar papéis. «Utente» é o nosso «usuário», «herdade» é «fazenda», e «carrinha» é «caminhoneta».
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xxxxxEm um restaurante de certa classe, depois de ler a «ementa» e encomendar a comida, você chama o «escanção» para escolher o vinho. A palavra é antiga, e designava o oficial da casa real que deitava o vinho na copa e o apresentava ao rei. Aqui no Bife de Ouro ninguém chama o «escanção», e sim o sommelier, palavra francesa que induzir a gente a ter acanhamento de pedir um modesto Granja União gaúcho e mandar descer um Chateau ruinoso.
xxxxxMas a verdade é que eu já conhecia a palavra «escanção» porque ela figura em um poema de Vinícius de Moraes no sentido de garçom de bar; está na «Balada de Pedro Nava», poema de amigo, que tem até música, e começa assim:
xxxxxxxxxxMeu amigo Pedro Nava
xxxxxxxxxxEm que navio embarcou:
xxxxxxxxxxA bordo do Westphalia
xxxxxxxxxxOu a bordo do Lidador?
xxxxxOs navios citados são, naturalmente, bares, e o mais frequentado por essa turma era o Recreio, na praça José de Alencar. Ali se juntavam Vinícius, Carlos leão,, o engenheiro Juca Chaves, Pedro Nava, o médico Chico Pires, o jornalista José Auto, e outros; só mais tarde vim a conhecer essa malta.
xxxxxNa segunda quadra o poeta perguntava:
xxxxxxxxxxEm que antárticas espumas
xxxxxxxxxxNavega o navegador
xxxxxxxxxxEm que brahmas, em que brumas
xPedro xxx Nava se afogou?
xxxxxMas longe é que veio a quadra com a palavra:
xxxxxxxxxxSe o tivesse aqui comigo
xxxxxxxxxxTudo se solucionava
xxxxxxxxxxDiria ao garçom: «Escanção!»
xxxxxxxxxxUma pedra a Pedro Nava!
xxxxxAposto que a palavra escanção quem a meteu na roda foi o próprio Nava, amante de boas palavras antigas.
Rubem Braga, «Em Portugal se Diz Assim» em Pequena Antologia do Rubem Braga, Selecção de Domício Proença Filho, Record, Rio de Janeiro-São Paulo, 1996.