Não vai de tempos estranhos, que isto é já de antigamente
Valha-me Deus, tal verdade,
tal honra, tal discrição,
tal gosto, tanta amizade
vedes vós lá na cidade
que queirais dela quinhão?
Eu não sei como isso é;
vivo cá do mundo fora,
e, inda aqui, ouve home e vê
tanta infinda cousa que
mais fora melhor lhe fora.
Não vai de tempos estranhos,
que isto é já de antigamente:
grandes perdas, curtos ganhos;
e sempre os riscos tamanhos
como o tamanho da gente.
Que o filho do carreteiro
se aventure ao fado imigo,
seja embora aventureiro;
porque está só no terreiro,
baixo ou alto o seu perigo.
Não é desprezar ninguém,
mas é dizer que a Fortuna
certas medidas lá tem,
que as pessoas lhes convém,
com que abate e com que enfuna.
O Rei como Rei padece
e o pobre, se acaso alcança,
por seu próprio teor crece;
logo ninguém se parece
na perda nem na bonança.
E como em nós (ainda mal)
mais que o bem, o mal é certo,
nunca o bem nos sai igual;
o mal sempre tal por tal:
vede que triste concerto!
Excerto do poema «A Dom João de Almeida entrando em religião um seu filho», D. Francisco Manuel de Melo - Poesias Escolhidas, prefácio, selecção e notas de José V. de Pina Martins, col. Textos Clássicos, Editorial Verbo, 1969.