sábado, 2 de julho de 2011

Memórias Intactas (6 de 7)

Na tábua de Cortona, a Virgem está representada no acto de escutar o Anjo, que se lhe dirige explicando e ao mesmo tempo impondo, como indica a sua expressiva gestualidade. Fra Angelico não faz uso da tradição de o Anjo — por cortesia ou estratégia — trazer flores a Maria, como se pode ver na parte exterior do célebre Retábulo de Gand, de Van Eyck, na bela tábua de Domenico Veneziano (c. 1445), ou na Anunciação de Botticelli (1489), onde o diálogo tenso entre Gabriel e Maria toma a forma de uma quase-dança. Perante a severidade com que o Anjo lhe anuncia o destino, Maria aflige-se, o livro pousado no colo. Mas já, sobre ela, a pomba muda a aflição em submissão resignada: «Eis a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra» (Lucas, 1:38). A vista que nos é oferecida do interior do quarto (camera virginis) é a mais elaborada, sugerindo o conforto do que agora passa a ser a sua antiga vida. A variante do Prado, assim vista de tão próximo, sem a mediação e a medida apoucante da reprodução, é acesa, docemente irradiante, e oferece-se à observação demorada da descoberta. O realismo de Fra Angelico impressiona-me. O altíssimo desígnio acomete Maria, atingindo-a no peito, o olhar estrangulado pela surpresa, agoniado pela escolha — «...ela perturbou-se e inquiria de si própria o que significava tal saudação» (Lucas 1: 29) —, pela inapelável Presença que a penetra e lhe desce ao âmago. Não o raio divino que opera cruamente no ventre de Maria na Anunciação de Gentile da Fabriano (c. 1419), de algum modo mais simbolicamente próximo de Lucas, 1:35: «...a força do Altíssimo estenderá sobre ti a tua sombra», mas um dardo luminoso e fértil, nascido das próprias mãos de Deus. Diante dela, o Anjo observa, reverente, controlando no previsível impacto do Anúncio a margem de humana imprevisibilidade. Para Maria, o passado é já reminiscência. Dos seus aposentos está ausente qualquer sinal de intimidade, tornada inútil. [continua]