sexta-feira, 1 de julho de 2011

Memórias Intactas (5 de 7)

De São Marcos, conheço duas Anunciações a fresco de Fra Angelico. Uma delas foi pintada no interior de uma das celas (c. 1441-1443), e a cena está representada num espaço quase fechado, despido de ornamentação, permitindo fazer convergir toda a atenção nas figuras etéreas do Anjo e da Virgem, ou, talvez melhor, na relação entre ambas. O despojamento é mais profundo do que em pintores um pouco anteriores, como Lorenzo Monaco, e está longe da tradição representada, por exemplo, por Robert Campin, que apresenta a Virgem a ler, no interior de uma sala profusamente decorada (c. 1425). O livro parece ter servido desde sempre para acentuar o inesperado da visita do Anjo, a interrupção da leitura despreocupada, e, ao mesmo tempo, revela a natureza recolhida de Maria: mas no pintor flamengo é mais do que uma simples nota, é o próprio cerne da cena doméstica. A dramaticidade perde-se em favor do cenário, enquanto na tábua de Monaco (c. 1410), pintada para um retábulo, o conteúdo da narrativa bíblica concentra-se na fisionomia das personagens. O outro fresco de São Marcos (c. 1450) está mais próximo de outras Anunciações de Fra Angelico: a que se encontra no Museu Diocesano de Cortona (c. 1432) e esta que agora tive diante dos olhos (c. 1430), trazida para Espanha pelo Duque de Lerma, e que pertenceu à igreja do Convento de São Domingos, em Fiesole.
Entre elas há, porém, diferenças que transcendem as de carácter decorativo, simbólico ou catequético. No fresco do corredor do Convento de São Marcos, o Anjo anunciador já tem a postura reverente que está ausente do fresco da cela. O Espírito Santo não está representado. A Virgem escuta, paciente. Apenas um imperceptível alarme passa no seu olhar. Nada que se pareça com a viva retracção de Maria, apesar do ramo de oliveira que o Anjo Gabriel lhe apresenta, na Anunciação do retábulo da Catedral de Siena (1333) atribuído a Simone Martini. [continua]