sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Carta de Stefan Zweig a Hermann Bahr

Salzburgo, 21 de Dezembro de 1929
Meu caro Senhor

O seu romance foi recebido com alegria, logo exumado da imensa entrega do Natal, e li-o imediatamente com paixão. É verdade que poderia discutir longamente consigo sobre o facto de não se poder dizer que ele seja verdadeiramente um romance, uma vez que a gente que lá aparece não evolui na sua maneira de ver as coisas, porquanto a essência do romance me parece residir na transformação das personagens e da sua percepção das coisas por acção dos acontecimentos externos e internos. Mas tudo isso não passa de uma questão de palavras, e devo dizer-lhe que tive um imenso prazer em descobrir a limpidez da sua apresentação, a inteligência dos diálogos, que dá uma imensa vontade de os ver representados em palco. -- Porque bastaria apenas um nada para transformar estas personagens, de contornos muito nítidos, numa peça de teatro, e nela teríamos a «comédia austríaca» por excelência, e atribuo sem hesitar o papel da princesa Uldus a Auguste Wilbrandt-Baudius. Que personagem, essa princesa! Conseguiu pôr nela alguma coisa de que a maior parte das pessoas não quer ouvir falar: tornar a velhice amável aos nossos olhos, e dar-lhe o brilho espiritual das coisas antigas e preciosas. Coloque-a num palco, num palco!, e dê-nos, em compensação, uma intriga um pouco mais animada! A nossa época quer movimento, mais do que nunca. Pense no diálogo com o prelado! Não sou fanático do teatro, mas você nunca escreveu, até aqui, um final de acto como o da página 111! Para que a peça seja a encarnação da Áustria, falta-me ainda ali qualquer coisa que se torna cada vez mais um elemento crucial: a corrupção que cresce como a as ervas e não cessa de dar novas flores de aroma bastante pouco agradável. Junte, então, ainda, uma boa dose dessa corrupção, não demoníaca, mas desordenadamente desajeitada; um pouco mais de tensão e eis o romance, infelizmente um pouco insuficiente, transformado em peça de teatro. Reflicta, caro e venerado mestre, e ponha em movimento as suas mãos aguerridas! O teatro, entre nós, foi tão abandonado por Deus e pelo espírito que seria maravilhoso que um demiurgo da sua qualidade pusesse em marcha o motor gripado.
Não sei se virei a encontrar um lugar onda possa dizer publicamente uma palavra sobre o seu livro, mas, em todo o caso, tenho a intenção de lhe apertar a mão daqui a pouco tempo e de, em breve, me apresentar em sua casa. Espero não ser importuno.
Sinceras saudações à Senhora

O seu fiel
Stefan Zweig
Carta a Hermann Bahr, datada de 21 de Dezembro de 1929, reproduzida em Stefan Zweig. Correspondence, 1920-1931, edição estabelecida por Knut Beck e Jeffrey B. Berlin, trad. de Laure Bernardi, Le Livre de Poche biblio, Grasset, 2005.