sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Diário de leitura

Archimboldi. Impossível não trazer à memória Arcimboldo e as suas composições vegetais e antropormóficas. Veremos se associação vem ou não a fazer sentido.

A figura do escritor «desaparecido», cuja ausência permite todas as divagações, mitificações e mistificações. A figura e o processo já estavam em Os Detectives Selvagens.

Referência a Jünger. Figura de patrício romano sobre quem muito se disse sem correspondência estrita com a verdade. O seu silêncio, só a espaços quebrado, o carácter retirado da sua vida alimentaram acusações e defesas, mistérios e mistificações. Poderia ser o modelo de Archimboldi. Mas, que eu saiba, a obra (o conjunto da obra) de Jünger não suscitou entusiasmos nem teses nas universidades. Até há bem pouco tempo seria impensável. Em que medida conheceria Bolaño a obra de Jünger?

Regressados da praia, ainda nos vamos refrescar e reclamar os últimos raios de sol para a piscina. Reina o maior silêncio. Uma família lê, estirada nas espreguiçadeiras. Cada um dos seus membros está virado para um sítio diferente. Uns levantam o livro à altura dos olhos, outros pousam-no no regaço. Têm um ar compenetrado, de quem realiza uma performance paciente ou cumpre uma missão. Lêem Murakami, Sousa Tavares, Kertész. A mãe lê Raquel Ochoa. Têm um ar sério e tristonho. Devem achar que somos bárbaros iletrados. Por mim, nunca acreditei muito na democracia da leitura.

Os tiques do mundo dos estudos universitários, o espírito de clã, o circuito dos congressos, das conferências e dos encontros. Nada de novo aqui. Curioso como alguns leitores publicamente entusiastas não se reviram no retrato.

Personagens muito bem lançadas na relação que estabelecem umas com as outras. Interessante a relação entre as velocidades, a do tempo e a da história.

O casal do outro apartamento também passa a tarde a ler, à sombra, ao lado de um pequeno estendal de calções e toalhas. Ele lê um jornal diário e outro desportivo, mas a maior parte do tempo faz palavras cruzadas e talvez o sudoku. Ela lê Júlia Navarro, A Irmandade do Santo Sudário. Têm uma «serpente» de espuma com ajuda da qual ele tenta, sem grande paciência, ensiná-la a nadar.

Ecos das intrigas do poder local. Dos poderes locais. A luta entre os organismos do Estado. Os braços de ferro das autorizações e das desautorizações. Na praia não se podem fazer festas com música ao vivo. Só com música gravada.

Hoje vi alguém na praia, uma turista estrangeira, pareceu-me, a ler um e-book. O aparelho era branco, o fundo do ecrã também, e faiscavam ambos ao sol.

As histórias laterais. Aparentemente laterais, porque parece não acrescentarem nada ao fio principal da narrativa. Mas trazem quase sempre alguma coisa: «El dolor, o el recuerdo del dolor, que en ese barrio era literalmente chupado por algo sin nombre y que se convertía, tras este proceso, em vacío. La conciência de que esta ecuación era posible: dolor que finalmente deviene vacío. La conciencia de que esta ecuación era aplicable a todo o casi todo».