sábado, 15 de junho de 2013

Poesia

xxxCésar seguiu de longe com infantil respeito e susto a família, até àquela parte mais elevada da Foz, que chamam Monte. Viu-a entrar em casa, animou-se a convizinhar da porta, que se fechara com aquele estrondo, que é uma rija pancada em peitos de amantes, e por ali se deteve alguns minutos, contemplando as janelas, e dizendo entre si: «Ou me não me ama, ou me aparece, por detrás das vidraças, quando mais não seja».
xxxEste monólogo não me parece tão lírico nem puxado de linguagem quanto era de esperar. Eu achava muito mais interessante que César começasse o seu monólogo por estas ou equivalentes palavras exclamativas: «Ó tecto abençoado, que cobre a mansão da minha amada! Ó receptáculo de um anjo! Ó pedaço de céu povoado por Ela»... Et coetera.
xxxDevia ser assim, e creio que até algumas vezes terá sucedido dizerem amantes coisas muito mais peitorais diante da pedra bruta que os separa do objecto amado; mas, a darem-se factos semelhantes, isto é, a apóstrofe do homem à pedra, eu ficarei propenso a crer que a inteligência da pedra tem razão para rir da inteligência do homem. O mais ordinário e corrente é não dizer ninguém semelhantes palavriados em casos análogos; e, portanto, César não disse disparate nenhum, pelo qual desde já o encartemos na repartição dos namorados alarves.
xxxO sucesso diz em crédito do moço. Dali a pouco, abriu-se subtilmente uma janela, rangeram gomas, ciciaram sedas, entre a compressão das mal-abertas portadas, e Clotilde encostou-se ao banzo da varanda.
xxxNeste ponto, César deu um testemunho indelével de seu puríssimo amor: é que não avançou um passo da sua postura estatuária, não proferiu um monossílabo, nem acreditou inventada a palavra própria da sua situação! Isto, leitor, é que é amar; isto é que é poesia. Creia vossa excelência que, se ele tivesse dito entre si: «Ó tecto abençoado que cobres a mansão da minha amada!» também depois exclamaria umas parvoiçadas muito mais graúdas, com as quais, meninas incautas se deixam embelicar, excepto aquelas que leram, ao saírem do colégio, histórias de tolos, e desde logo formaram em seu espírito uma espécie de estalão para lhes medirem a altura, quando a desgraça lhos deparar ao correr da vida.
xxxA elas, e a nós, e a todos os que nos lerem, livre Deus de tolos, de tolos à força de estilo, que são os mais daninhos herpes do corpo social.

Camilo Castelo Branco, excerto de «César ou João Fernandes» em As Novelas de Camilo, selecção, prefácio e notas de Alexandre Cabral, Portugália Editora, Lisboa, 1961.