quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Imprudência gramatical - 2

Em português, como se sabe, substituímos o futuro pelo presente. Ninguém diz «Para o ano tirarei férias em Agosto» ou «Amanhã irei ao cinema», mas sim «Para o ano tiro férias em Agosto» ou «Amanhã vou ao cinema». Ninguém usa o futuro, sobretudo na primeira pessoa, e suponho que literariamente também deva ser cada vez mais raro. Há muito que os linguistas e os gramáticos deram por isso, tal como deram pela substituição sistemática do condicional pelo pretérito imperfeito. Mas, se Karl Kraus tinha razão e a decadência da linguagem é o primeiro sinal de todas as outras decadências, então esta anulação do futuro no quotidiano pode ter um significado simbólico e podemos até imaginar que ela reflectiu e anunciou o caminho que nos trouxe ao lugar onde chegámos. É paradoxal que o Futuro constitua um dos pilares de todo o discurso político? Talvez isso até explique alguma coisa. Buzzati sublinha a maior ductilidade da fórmula inglesa. Mas também nós achámos o modo de mitigar a assertividade do presente: «Para o ano estou a pensar tirar férias em Agosto» ou «Amanhã estou a pensar ir ao cinema». É verdade que aí se expressa uma intenção, mas a vontade, no banho-maria da incerteza, dilui-se.