segunda-feira, 4 de julho de 2011

Gostos e desgostos/ ainda as Viagens na Minha Terra

Nenhum outro texto de Garrett anuncia tanto as Viagens como «A Notícia do Auctor d’Esta Obra» que antecede a Lírica de João Mínimo, datada, desde a 2.ª edição, de 15 de Dezembro de 1828, em Birmingham, Warwickshire, Inglaterra.
Várias afinidades poderiam ser apontadas, das técnicas narrativas aos objectos da crítica, nesta espécie de breve ensaio ou antecipação do que viriam a ser as Viagens na Minha Terra, ainda que nesta ocasião a viagem seja da Praça da Figueira em direcção a Sintra, ficando-se muito embora por Odivelas, no «antiquissimo e celebrado convento (...) em cuja egreja jaz o grande rei D. Diniz, e em cujo dormitório tantas vezes jazeu outro rei – que não sei se foi grande ou pequeno – D. João V, de freiratica memoria.»
A verdade é que já em 1828, Garrett experimentava fórmulas que viria a usar na obra de 1843: «As digressões matam-me: é a minha terrível e imperdivel manha. ­– Onde iamos nós? – No caminho de Odivellas: é verdade.»
Significa isto, talvez, que a concepção narrativa a que as Viagens obedecem estava já em formação e que, nos 15 anos que medeiam entre uma e outra, ela se foi consolidando.
A ideia ou concepção narrativa, mas também alguns tópicos essenciais como, por exemplo, o «desapontamento – desapontamento inglez – que não ha outra palavra em lingua nenhuma que expresse o que eu senti – desapontamento tam triste e tam agudo, nunca o provei. O interior da egreja é exactamente o tal mixto hermaphrodito de architectura amphibia e ridicula, de doirados e marmores fingidos, de columnas anomalas que a nenhuma ordem pertencem – ou mais exactamente, formam a nova ordem asnatica, adoptada para a construção de quase todos os novos edifícios de Portugal, e para a emplastação e degradação de todos os antigos.»
Não deixa de ser curiosa, para além de outros variados aspectos, a avaliação histórica de João Mínimo: «O que fica (...) são os bons tempos da monarquia, são os reinados da raça Joannina antes do captiveiro castelhano...» Esta será, no essencial, a História de Portugal de Oliveira Martins, que Pessoa retomou na Mensagem.
João Mínimo, depois de um longo exílio interior, abandonará mesmo «este malfadado paiz», ‘deixando’ os seus versos a Garrett.
Onde é que quero chegar com tudo isto? A que a genealogia do desencanto português com Portugal passa, de forma decisiva, por Garrett. Poder-se-á, talvez, dizer que, no autor das Viagens, esse desencanto é contrabalançado por uma vontade civilizadora e uma espécie de fé no «Portugal velho», autêntico, a que também se refere João Mínimo, vontade e fé que se foram gastando e perdendo nas gerações seguintes, sem nunca desaparecer, porém, por completo, nem mesmo com Eça. Talvez. É aliás, de certo modo, essa convicção que alimentou o chamado neogarrettismo, ideia literária de um «nacionalismo esclarecido», que escapasse ao provincianismo sem se afastar do tradicional.
Seja como for, em Garrett, parece-me evidente, coincidem gosto e desgosto pelo país. O desgosto aproxima-nos do Autor, o gosto talvez nos reconcilie brevemente com o país, que é, queiramos ou não, a razão de sermos o que somos.
Mas, entre a «Notícia» e as Viagens, há, entre outras óbvias diferenças, uma que me parece de extrema importância. É que, além de uma língua mais aparada, Garrett afiou e refinou a ironia. Será esse o segredo da nossa sobrevivência?


Texto originalmente publicado no blogue O Divino, em Dezembro de 2004.