terça-feira, 28 de junho de 2011

Memórias Intactas (2 de 7)

Chega-se a uma idade em que o casual e o deliberado se integram e se organizam no que somos, e desenham um destino descoberto e desdobrado como uma rota traçada pela nossa própria mão sobre um mapa. A idade de saber o que só a nós interessa saber. A idade de andar por estradas secundárias. De não esperar já ter razão.
A idade de ignorar aonde se vai, sabendo que iremos dar onde queremos ir. A idade de os livros comunicarem entre si. A idade em que um autor improvável nos revela outro autor que julgávamos conhecer. A idade de tudo o que sabemos que somos capazes de saber: a idade do sentido.
Um saber fundo de silêncio, de invisível travessia de palavras e paisagens. Percorrer com Liszt o Vale de Oberman (mas que vale, o abismal de Horowitz, menos íngreme em Arrau, mais meditativo em Brendel?) e ouvir o que só Turner poderia ter pintado — a idade de saber o que nunca saberemos. Sentir o sussurro sanguíneo do sobressalto no reconhecimento da grandeza estóica de Pedro Laín Entralgo quando escreve em homenagem a Luís Rosales que a dor, ou a memória da dor, exige que se viva à altura do coração — do coração limpo dos poetas que bate acima das diferenças de entendimento sobre a verdade e o bem. No vinho, perceber o travo da terra vermelha e rasa avistada na viagem, e saber que há uma relação entre uma coisa e outra. [continua]