domingo, 22 de maio de 2011

Memórias Intactas

A pintura de Chardin. Interiores de uma intimidade burguesa e contida: do chá fumegante e solitário de Marguerite, a senhora Chardin, aos episódios domésticos da «acção de graças» e da «toilette matinal». O gesto melancólico de umaa bordadeira. Jovens, sobriamente contracenando com uma mesa, cadeira ou escrivaninha, estabelecem um diálogo mudo com objectos pequenos e comuns, talvez simbólicos: cartas, pião, lápis. A juventude e candura absolutas da espantosa menina da raqueta e do volante irrompem iluminadas de dentro (inquieto-me, porém, sempre que a admiro, com o que me leva a pensar em Balthus). Em Chardin, a surpresa não está no pormenor do desenho, mas na consistência do conjunto, na arquitectura do instante. Dominam os castanhos, os vermelhos, os brancos, alguns azuis. Absorto num quarteto de Haydn, detenho-me nas naturezas-mortas: cobres, vidros, porcelanas, madeiras. Caça, pão, vinho, frutos, mesas acesas por esplêndidos copos com água. O esfumado estojo do fumador. A irrecusável epifania de um cesto de morangos. Pintura de um mestre discreto, bem acomodada no seu século, nada tem que possa servir para incensar a modernidade. Mas a sua lição — que é também a da representação do silêncio —, suscita em mim uma simpatia absoluta.