Leitores virtuosos
O texto do livro dos olhos do gato está escrito em caracteres soltos, e sua unidade só consegue ser lida quando o sopro da vontade criadora do leitor move e ordena cada um deles para a composição sintática da escritura. Mais ou menos como na partitura da sonata: todas as notas da escala musical estão residentes nas cordas da viola sábia e do piano virtuoso, ou nos furos da flauta eólica e no fole do órgão tempestuoso. Mas só os dedos ou o pulmão do artista sabem ensinar aos instrumentos virtuais a arrumação compósita dos sons para o ritmo e a melodia. Não é diferente o labor elementar da pintura, feita de fragmentos ordenados e ajuntados de formas e cores, como a poesia feita de fragmentos de sílabas e palavras, e a música de fragmentos de sons. A obra inteira de um poeta, de um músico, de um pintor é um échantillon, um patchwork de fragmentos. Por isto, os poetas, os músicos e os pintores se repetem, não ad nauseam, mas ad orgasmum — até o orgasmo — atravessando a espessura dos tempos, vestíbulo da eternidade, para que se veja o carmen pulcherrimum da visão platônica dos olhos de gato de Santo Agostinho — a beleza da ordem dos séculos.
Gerardo Mello Mourão, Os Olhos do Gato & O Retoque Inacabado, Rio de Janeiro, 2002.