sexta-feira, 23 de abril de 2010

Dos livros - IV

À medida que envelhecemos, quando chega a oprimir-nos esse acervo de livros que já não leremos, à medida que o tempo passa e se faz, cada vez mais, dramaticamente escasso, temos a nostalgia de uma biblioteca essencial, de poucos mas bons livros. Aqueles que nos formaram e encantaram — e decidiram, porventura, do nosso destino. São os livros que levamos para a tal ilha deserta. Ou, na lúcida advertência de um leitor omnívoro como Jünger, os livros que traríamos dessa ilha, livros que parecem sempre novos a cada releitura, e preenchem o vazio de horas de solidão e silêncio, e nos confortam neste duro ofício de viver. Livros que, para uns, são os grandes monumentos literários, referências obrigatórias do nosso património cultural. Livros que, para outros, não são os grandes clássicos, que toda a gente conhece ao menos de nome, mas as obras mais discretas, quase descobertas pessoais — não as teríamos encontrado se as não tivéssemos procurado —, talvez confissões em surdina, memórias interiores, diários íntimos, epistolários em busca de um diálogo com o Outro. São, em suma, livros que podemos ler de qualquer maneira, sentados, de pé, deitados, em privado e em lugar público, sem que seja mister vestir-nos de ponto em branco, como para receber visitantes ilustres. Como fazia Maquiavel quando relia os seus clássicos latinos e italianos.

Excerto de um texto de João Bigotte Chorão intitulado Os livros que se trazem da ilha