quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Algo Maligno Vem Aí


A morte de Ray Bradbury apanhou-me em plena tradução de Something Wicked This Way Comes para a Saída de Emergência. O fascínio era total, mas não houve como apressar o labor literário e estilístico que uma tal obra exige. Mas eis que o livro acaba de chegar às livrarias, em plena rentrée editorial. E é absolutamente obrigatório ler essa extraordinária fábula sobre o bem e o mal.

***

   – Três – disse ele, agora, a meia-voz. – Três da manhã…
No prado, as tendas, a feira estava à espera. À espera de alguém, alguém que avançasse pela rebentação de ervas. As grandes tendas enchiam-se como bramidos. Emanavam suavemente baforadas de ar que cheiravam como velhas feras amarelas.
Mas só a lua penetrava com o olhar a escuridão oca, as cavernas profundas. Lá fora, feras noturnas suspendiam-se, a meio do galope, num carrocel. Para lá delas, estavam espectros do Labirinto de Espelhos, que abrigava séries múltiplas de vaidades vazias, onda sobre onda, imóveis, serenas, prateadas pela idade, brancas do tempo. Qualquer sombra, na entrada, podia avivar reverberações da cor do medo, desenredar luas fundamente enterradas.
Se um homem ficasse ali, ver-se-ia ele a desdobrar-se na distância um bilião de vezes, até à eternidade? Olharia um bilião de imagens para trás, cada rosto e o rosto a seguir e o rosto a seguir ao velho, ao mais velho do que o outro, ao mais velho de todos? Dar-se-ia ele por perdido numa poeira fina, bem longe, bem lá no fundo, não com cinquenta mas com sessenta, não com sessenta mas com setenta, não com setenta mas com oitenta, noventa, noventa e nove anos de idade?
O labirinto não perguntava.
O labirinto não dizia.
Simplesmente estava ali e esperava como um grande bloco de gelo ártico.
– Três horas…

[excerto do Capítulo 13]





– Três – disse uma voz.
Will ouviu, frio mas a aquecer-se, contente por ter um teto por cima, um chão por baixo, parede e porta entre ele e exposição a mais, liberdade a mais, noite a mais.
– Três…
    A voz do Pai, agora em casa, a andar pelo átrio, falando consigo próprio.
Ora, pensou Will, isso foi quando o comboio chegou. Tê-lo-ia o Pai visto, ouvido, seguido?
    Não, não devia! Will arqueou-se sobre si mesmo. Porque não? Estremeceu. De que tinha ele medo?
Da feira irrompendo como uma debandada negra de ondas de tempestade lá fora, para lá da margem? De ele e Jim e o Pai saberem, da cidade adormecida, sem saber, era isso?
   Sim. Will enterrando-se fundo. Sim…
– Três…
   Três da manhã, pensou Charles Halloway, sentado na beira da cama. Porque veio o comboio àquela hora?
Porque, pensou ele, é uma hora especial. As mulheres nunca acordam a essa hora, pois não? Dormem o sono dos bebés e das crianças. Mas, e os homens de meia-idade? Esses conhecem bem essa hora. Meu Deus, à meia-noite não é mau, acordamos e voltamos a adormecer, à uma ou às duas não é mau, agitamo-nos, mas dormimos de novo. Às cinco ou seis da manhã, há esperança, pois a madrugada está mesmo abaixo do horizonte. Mas às três, Jesus Cristo, às três da manhã! Os médicos dizem que o corpo está na maré baixa, nesse momento. A alma está fora de combate. O sangue corre devagar. Estamos mais pertos de estar mortos do que nunca, salvo quando estamos a morrer. O sono é um fragmento de morte, mas às três da manhã, olhando de olhos completamente esbugalhados, é a morte viva! Sonhamos de olhos abertos. Meu Deus, se tivéssemos energia para nos levantarmos, liquidaríamos os nossos meio-sonhos com cartuchos de espingarda! Mas não, ficamos estendidos, presos ao fundo profundo de um poço mais do que seco. A lua desliza para nos olhar cá em baixo, com o seu rosto idiota. É um longo caminho de regresso até ao pôr do sol, uma grande distância até à alvorada, por isso apelamos a todas as coisas loucas da nossa vida, às estúpidas coisas adoráveis feitas com pessoas que conhecíamos tão bem e que agora estão tão mortas — E não era verdade, lera ele em algum lado, que morriam mais pessoas às 3 da manhã do que a qualquer outra hora…?
    Para! gritou ele, silenciosamente.
– Charlie? – disse a sua mulher, a dormir.
    Lentamente, tirou o outro sapato.
 A sua mulher sorriu, a dormir.
    Porquê?
    Ela é imortal. Tem um filho.
    É teu filho, também!
    Mas que pai realmente acredita nisso? Não carrega qualquer fardo, não sente qualquer dor. Que homem, como faz uma mulher, jaz na escuridão e se ergue com uma criança? Os suaves e sorridentes seres detêm o belo segredo. Oh, que relógios estranhos e maravilhosos são as mulheres. Fazem ninho no Tempo. Fazem a carne que se aferra e liga à eternidade. Vivem no interior do dom, conhecem o poder, aceitam, e não precisam de falar disso. Porquê falar do Tempo quando se é o Tempo, e se dá forma aos momentos universais, quando eles passam, transformando-os em calor e ação? Como invejam os homens, e muitas vezes odeiam, esses relógios calorosos, essas esposas, que sabem que viverão para sempre. Então, que fazemos nós? Nós, homens, tornamo-nos terrivelmente maus, porque não conseguimos ficar agarrados ao mundo ou a nós próprios ou ao que quer que seja. Somo cegos em relação à continuidade, tudo se quebra, cai, se funde, para, apodrece, ou foge. Então, uma vez que não podemos dar forma ao Tempo, como ficamos? Sem sono. A olhar.
Três da manhã. Esta é a nossa recompensa. Três da matina. A meia-noite da alma. A maré baixa, a alma vaza. E um comboio chega a uma hora de desespero… Porquê?
 
[excerto do Capítulo 14]