sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Arte de bem pensar

... é preconceito enraizado, entre literatos e diletantes, que o escritor é exclusivamente um sensível, quer dizer, uma pessoa dotada, em alto grau, de permeabilidade aos fenómenos da emoção estética pura. Quem assim pensa, exclusivamente confia a factores infusos, a factores (digamos a palavra) fatídicos, o que afinal é função de faculdades intelectuais, doseadas embora nas proporções de um dom ou predisposição inata. Chamemos génio a esse condão (ou talento, ou inspiração, ou tendência); partamos da sua necessidade para que o escritor seja artista, mas atendamos a que a arte de escrever tem uma técnica que se não reduz à simples euritmia, senão que se alarga a processos lógicos e dialécticos, e que portanto se enquadra na arte de bem pensar. Nada mais falso do que tomar uma língua por simples matéria plástica, meio de dar a cor, o som, o impressionante, o pitoresco. A linguagem, sendo um facto originariamente psicológico, é, no grau superior (e só este importa verdadeiramente à literatura), uma conquista racional, e portanto um instrumento inegavelmente lógico.

Vitorino Nemésio, «A Arte de Escrever», O Instituto, vol. 76, Coimbra, 1928.