segunda-feira, 11 de julho de 2011

Memórias Intactas

Num dos quartos alugados em que morei, tinham os anos setenta acabado de se finarem, um dos hóspedes era o que se poderia chamar «um bom rapaz»: tinha educação, um permanente sorriso, uma recta atitude. Aplicava-se nos estudos com a persistência dos humildes, escavando metódica e conscientemente as entranhas do futuro. Talvez fosse essa também a razão do seu interesse pela política, que expunha com desvelo e singela convicção. Um grupo de outros hóspedes, magalas e outros tipos em trânsito na vida, recebia o seu entusiasmo com um misto de troça e benevolência e tentava aliciá-lo para viagens e libações proibidas. Em suma, tentava, por mera brincadeira, desencaminhá-lo. Numa dessas peregrinações nocturnas tiradas a ferros, fizemo-lo debutar num bar obscuro ali à rua da Glória. O ambiente era fracamente feérico e francamente triste. Pedimos champanhe, um espumante chilro e caro, e várias mulheres carregadas de batom e rímel se vieram sentar à nossa mesa. Rimos e desconversámos, vigiando pelo canto do olho o nosso cavaleiro andante. A coisa estava já a ponto de perder a graça, quando o nosso amigo encarou pela primeira vez a rapariga que se acomodara a seu lado e com profundo desgosto, a custo disfarçado de interesse regenerador, perguntou-lhe:
– Mas porque andas nesta vida?
Ela olhou-o com espanto e retorquiu sem sombra nem malícia:
– Porque gosto de foder.