domingo, 19 de junho de 2011

Memórias Intactas

Um dia perguntaram-me sobre o meu entusiasmo pelas Viagens na Minha Terra e as razões do enfado de outros. A chave, creio, está no tom adequado da leitura. Aquele tom, ou meio tom, de ironia amistosa que, ao denunciar-se, permite ir dizendo mais e mais gravemente do que o anunciado. Um tom cuidadosamente coloquial, subtilmente brincado, astuciosamente digressivo. Onde mais encontramos isso na nossa literatura? A graça, o donaire (palavra admirável e fora de moda) da prosa ameniza as agudezas do pensamento e a floresta de referências, mais densa que o pinhal da Azambuja. Faz esquecer momentos de quebra, pontos de desequilíbrio. Não é, obviamente, uma obra para ler nos alvores da adolescência, um disparate que afastou gerações de leitores.
As Viagens são uma obra inteligente, variada, elegante, europeia. E muito romanticamente portuguesa. Há nela, ainda, o que a alguns parece puerilidade e é genuína vontade civilizadora. Apesar do seu valor matricial na literatura portuguesa, afasta-se muito do horizonte do leitor actual. Talvez seja mais fácil, hoje, que se apreenda, embora de forma quase sempre esquemática, o trágico de Frei Luís de Sousa, fechado na sua construção, do que a observação arguta ou a alusão culta que Garrett usa, com natural à-vontade, nas Viagens. E o episódio sentimental de Carlos e de Joaninha, isolado, fica a perder em confronto com o desenrolar tenso da acção dramática.
As Viagens nada têm que as torne populares ou queridas de um público como o nosso. A tentativa de as impor, no ensino, como marco histórico e literário, tem falhado triunfalmente. Os leitores mais fiéis das Viagens são, estou convencido, escritores, gente do ofício.