Memórias Intactas
Um dia perguntaram-me sobre o meu entusiasmo pelas Viagens na Minha Terra e as razões do enfado de outros. A chave, creio, está no tom adequado da leitura. Aquele tom, ou meio tom, de ironia amistosa que, ao denunciar-se, permite ir dizendo mais e mais gravemente do que o anunciado. Um tom cuidadosamente coloquial, subtilmente brincado, astuciosamente digressivo. Onde mais encontramos isso na nossa literatura?
As Viagens são uma obra inteligente, variada, elegante, europeia. E muito romanticamente portuguesa. Há nela, ainda, o que a alguns parece puerilidade e é genuína vontade civilizadora. Apesar do seu valor matricial na literatura portuguesa, afasta-se muito do horizonte do leitor actual. Talvez seja mais fácil, hoje, que se apreenda, embora de forma quase sempre esquemática, o trágico de Frei Luís de Sousa, fechado na sua construção, do que a observação arguta ou a alusão culta que Garrett usa, com natural à-vontade, nas Viagens. E o episódio sentimental de Carlos e de Joaninha, isolado, fica a perder em confronto com o desenrolar tenso da acção dramática.
As Viagens nada têm que as torne populares ou queridas de um público como o nosso. A tentativa de as impor, no ensino, como marco histórico e literário, tem falhado triunfalmente. Os leitores mais fiéis das Viagens são, estou convencido, escritores, gente do ofício.