terça-feira, 14 de junho de 2011

A História e a Literatura

(a propósito do romance O Forte, de Bernard Cornwell, Saída de Emergência, 2011)

Na sua génese romântica, o romance histórico teve sobretudo a função de fixar lendas e heróis, construindo um imaginário sobre um passado remoto e fundador, e por isso identitário. Esta acção durou muito para além do romantismo estrito e prova disso é a frase de John Ford: entre a lenda e a realidade, registe-se a lenda. Mas, desde essa época, o romance histórico tem percorrido todas as gradações e revestiu formas e propósitos variados, alargando, ou até dissolvendo, as suas fronteiras.

Em O Forte, de Bernard Cornwell, reencontramos o romance histórico num quadro muito curioso. Desde logo, pelo facto de o episódio que narra ser pouco conhecido. Trata-se da «Penobscot Expedition», cujo desfecho é descrito como a maior derrota naval americana antes de Pearl Harbor. Estamos em 1779 e, em traços muito gerais, o contexto é o da tentativa de os Britânicos lançarem as bases de uma nova colónia numa América que vivia os fervores revolucionários da independência.
Cornwell mantém-se muito perto da evolução real dos acontecimentos e dos seus protagonistas, apoiando a narrativa em testemunhos e documentação diversa. A primeira função deste romance histórico não é o de fixar uma lenda, nem apenas o de recriar um ambiente, nem o de preencher pela imaginação as lacunas de uma realidade imperfeitamente conhecida. É, creio, a de reconstituir com fidelidade um episódio, cujos contornos são pouco conhecidos do público, e através dessa reconstituição tomar uma posição num contexto de revisionismo histórico e de leitura política desse mesmo episódio. Essa reconstituição deverá ser uma clarificação e, nessa medida, o romance – aliás competentemente construído –  é, a seu modo, também um romance de tese e um romance de intervenção.
Mas, a meu ver, O Forte tem ainda outros motivos de interesse. É que, na operação de clarificar e dar um sentido à realidade histórica, permitindo uma reavaliação de certas figuras à luz dos factos, Cornwell faz ressaltar aspectos que abalam fortemente uma personagem lendária da revolução americana: Paul Revere. O curioso é que o seu estatuto lendário fora-lhe conferido literariamente, através de um célebre poema de Henry Longfellow, ainda no tempo em que a poesia tinha o poder de fabricar mitos. Longfellow era neto de uma outra personagem importante do romance, o segundo comandante da expedição, Peleg Wadsworth, que foi, por sua vez, testemunha directa dos comportamentos indignos e cobardes de Revere. Como diz Cornwell numa importante nota final ao romance: «Peleg Wadsworth teria ficado horrorizado, mas, como seguramente ele sabia melhor do que a maior parte dos homens, a história é uma musa inconstante e a fama a sua injusta descendente».
Percebemos, no final do livro, que existe toda uma bibliografia sobre a expedição e os seus protagonistas, envolvendo sobretudo a história do Massachusetts. Mas não deixa de ser significativo que a recolocação dos factos no seu devido lugar se afirme também no plano literário. Já não pela poesia, que perdeu esse poder e esse estatuto, mas pelo romance, que é ainda um lugar onde se fazem e desfazem lendas.