quinta-feira, 5 de maio de 2011

Livros da feira

Fui, se não o primeiro, um dos primeiros leitores portugueses do diário que Mircea Eliade escreveu durante a sua estada em Portugal entre Fevereiro de 1941 e Junho de 1945, conservado inédito até à publicação, em 2001, da péssima edição espanhola da Kairós. Após anos de múltiplas tentativas de publicar o livro em Portugal, muito anteriores à edição espanhola, a Guerra & Paz conseguiu realizar o feito em 2009.
Aos trinta e quatro anos, o Eliade que chega a Portugal para integrar a legação romena é já um exilado. O afastamento da pátria representou o afastamento da celebridade precoce e rumorosa, confinada ainda, como ele, a uma língua que mais ninguém falava. Mas Eliade não se anula: para si, no diário, recoloca-se no centro e imola-se no fervor da sua obra passada, presente e futura. Essa vitalidade revelar-se-á o nervo da sua existência e da sua sobrevivência. Cruamente confessional por vezes, o diário testemunha um drama pessoal com duas faces, simultâneas e íntimas: o temor pelo destino da pátria e a provação da dor privada. Reflecte o homem de espírito perturbado pelo homem de carne, inquietos ambos espírito e carne. Mas o homem é o homem e a sua sombra. Que é o homem sem o lampejo do trágico, sem o lastro da sua lucidez? E que é a arte sem mágoa e sem mácula? O diário português de Eliade não é nem asséptico nem simpático. De Portugal diz, em 1943, que lhe parece um país moribundo, que é um passado sem glória. Nota a mediocridade intelectual, sobretudo se confrontada com Paris ou mesmo Madrid. Outras páginas há, porém, de admiração por pessoas e lugares.
Mas um diário não é uma obra «sobre» isto ou aquilo, é o registo de uma respiração. E, através dela, a obra restitui-nos o homem e a sua inteligência do mundo.