quinta-feira, 7 de abril de 2011

Linguagem comercial


Há uns anos, preparava-me para ir escutar o Orfeu de Monteverdi, durante um daqueles acontecimentos musicais festivos que procuram congregar um público heterogéneo, quando dois conhecidos cruzaram olhares. Um estava já no interior da sala onde iria ter lugar a interpretação da ópera, o outro passava no corredor apinhado de gente que dava acesso àquela sala. O primeiro perguntou em tom de clara expectativa: – Vens para aqui?


– Não - respondeu o outro - tenho bilhete para outra sala.


– Ah, tinhas um lugar aqui mesmo… – disse o primeiro, com algum desapontamento.


– Que é que vai haver aí ? - perguntou o segundo.


– Orfeu - respondeu o primeiro, de pé, junto ao seu lugar, desenhando o nome com voz nítida.


– Isso é o quê ? - perguntou o outro sustendo ainda, por instantes, a despedida.


– É a história de um viúvo, esclareceu o primeiro em fulminante síntese.


Esta breve história exemplar, prestando-se a comentários de natureza diversa, serve-me hoje de pretexto para fazer aqui referência às operações de redução praticadas pelo marketing e publicidade de um bom número de editoras.



A síntese – quer se trate de uma frase liminar, quer se trate de uma sinopse apertada – é um procedimento universal da publicidade e um aspecto importante da sua eficácia.


Sendo também uma forma clássica de promoção dos livros, é, porém, neste caso, uma prática exigente, já que o seu desafio consiste em, no mesmo passo, captar a essência do conteúdo da obra e expressá-la de modo conciso, com arte e engenho tais que permitam juntar a essa forma emblemática uma função apelativa.



Quando a função apelativa se sobrepõe às outras, gera-se uma cadeia de equívocos. Isto é, sempre que o critério comercial tem precedência sobre os aspectos intrínsecos ao livro, as fórmulas sintéticas e os resumos tendem a ser orientados (e as capas também não escapam a isso), não tanto já em relação à obra publicada, mas sobretudo em função de um público potencial.



A essa operação subjaz, porém, um juízo de valor sobre esse público – sobre os seus gostos e preferências, o seu imaginário e até mesmo sobre as suas capacidades (de compreensão e leitura), esquecendo que, contas feitas, esse juízo reflecte, afinal, o gosto, as preferências, o imaginário e as capacidades de quem o formula.



Assim, confunde-se síntese com simplificação e esta com redução ao menor denominador comum, com resultados mais caricatos nuns casos, mais neutros ou tristes noutros casos, mas sempre no plano do lugar-comum, quantas vezes ornamentado com adjectivação hiperbólica.



Há evidentemente muitas espécies de livros e muitos públicos diferentes, e há géneros que, pela sua prória natureza, saem incólumes deste tipo de operação. Mas, em geral, uma sinopse para fins comerciais deve ser muito bem pensada e executada, sem concessões àquilo que ouço designar por «linguagem comercial». É que, equacionando seriamente a questão do público leitor e os destinatários primeiros da informação editorial sobre livros, por exemplo livreiros e jornalistas, parece-me essa linguagem ter, hoje, um efeito mais de afastamento do que de aproximação.



É evidentemente crucial para os editores vender os livros que produzem e, para isso, é necessário ter em conta as situações, as experiências e os conhecimentos dos potenciais leitores de cada um deles. Mas os editores têm uma função cultural a que é difícil eximirem-se – e é precisamente essa dimensão do livro que, reconhecidamente, constitui a grande dificuldade de o pensar como puro objecto comercial – e creio que não é bom para eles venderem o mito de Orfeu como «a história de um viúvo», por mais vendável que esta descrição possa parecer, e não só porque estarão a vender gato por lebre.


em B:Mag Booktailors Publishing Magazine #3