quarta-feira, 20 de abril de 2011

Escrever bem

A vastidão corresponde normalmente a um prolongamento do olhar, que, ao prolongar-se, perde energia, espraia-se, espalha-se, lasso de plenitude, ou acossado pela angústia e pelo vazio. Dizer da vastidão que é «tensa e ofuscante» (Ruy Duarte de Carvalho, Os Papéis do Inglês) ajuda-nos a compreendê-la numa nova dimensão, a uma nova luz.
Escrever bem também é isto.

Há por aí escribas que se convenceram que para se ser escritor não é preciso escrever bem, também convencidos de que escrever bem é só uma questão de escrever com correcção sintáctica e ortográfica.
Estão duplamente enganados.

«Chegámos à Pedra do Tambor, onde pernoitaríamos antes de atravessar o Kuroka e entrar no parque na manhã seguinte, já a noite vinha vindo. Com ela a aragem fria de uma brisa rasteira. É aquela hora que arrepanha a alma e é sempre breve, mas bastante, assim. É a hora que estrangula a digestão das horas, o programa das rotas, a ordem das tarefas, o compromisso, a lei. A incidência derradeira daquela luz directa recolhi-a de costas para o poente, a ver estender-se a sombra da pedra a que encostava, a da margem de espinheiras que acompanhava o curso de um declive que de outra forma não se anunciava, o reflexo, àquela hora, do ocre dessas ilhas, cónicos puzzles de blocos de granito, acumulados juntos e a formar alturas, a emergir do mar dos pastos, vastos, vastos, do lençol do chão, e a púrpura difusa de uma curva da escarpa, muito mais ao longe, a leste, altitude de platôs, matriz de migrações. E vinha também a lua. É disto que se faz a emoção. Conjugação de dados, ou de acasos, não dá para inventar, só crê quem não foge nem pode furtar-se ao que este mundo forja para convertê-lo a quê, aos ventos da vontade, e qual, a sua, a alheia? A lua vinha e cheia e iluminou-se a anhara no bafo aceso das paisagens chãs, na vertigem do tempo, no sopro da galáxia, no hálito da terra.»

Ruy Duarte de Carvalho, Os Papéis do Inglês, Livros Cotovia, Lisboa, 2000.