sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Sinopse de uma fábula (primeira parte)

O «conceito» não era, obviamente, novo. Mas a abertura ao exterior era um imperativo da modernidade. Os grandes gestos são o corpo da política moderna e a sua difusão é para esta uma verdadeira alma.

Os mineiros não eram um grupo especialmente influente, mas os acontecimentos do Chile dariam ao evento um contexto novo, que valeria a pena explorar. Seria um marco, mais um, da acção do Governante. Ia cair bem, tinha a certeza.

Quando o Governante transmitiu aos ministros a decisão de reunir o Conselho no fundo de uma mina, não tugiram nem mugiram. Antes estremeceram. De desconforto. No fundo, o homem, para chamar a atenção, ia metê-los num buraco.

Foram feitos preparativos, por gente cuja função era justamente fazer preparativos: almoços (e jantares) de trabalho, distribuição de sorrisos, de meias palavras e de pequeníssimas promessas e a missão de deslumbrar o presidente da câmara local com a presença do Governante e da parafernália mediática, que se instalaria, dias a fio, na localidade.

No dia marcado, sob uma floresta de câmaras de televisão e fotográficas, os ministros foram introduzidos, em directo, no elevador de acesso ao fundo da mina, uma galeria a mais de quinhentos metros de profundidade. Seguiram-se-lhes, imediatamente, o presidente e a vereação camarária e outros convidados. Haveria, antes do início da reunião do Conselho, uma sessão pública em que estariam presentes as autoridades locais, as forças vivas do concelho, e mesmo uma ou outra já moribunda.

O Governante tomou a palavra, pondo o discurso em marcha com os agradecimentos efusivos da praxe, até chegar a uma velocidade de cruzeiro:

... não só tivemos a ideia de aqui vir, como decidimos vir, e, o que é mais, viemos mesmo, o que é um acto de extremo significado político e social. E não nos limitámos a vir, trouxemos connosco uma mensagem de esperança. Mas as mensagens não bastam, por isso trouxemos também os actos, como este que agora estamos aqui a realizar (aplausos esparsos). Mas isso não é tudo. Pode agora o país ver, com os seus próprios olhos, que aqueles que nos acusam, injustamente, de não cortar a despesa pública, não têm razão. Por isso decidimos, como acto simbólico, não utilizar os carros do Estado e do Governo para a nossa deslocação. Não. Fizemos questão de nos deslocarmos em jipes cedidos pelo Exército (aplausos, desencontrados). Mas ainda temos mais e melhor. Quem levar estas duas lindas colchas que aqui vêem, leva também este cobertor de lã. Mas ainda não é tudo. Quem levar estas duas lindas colchas e o cobertor de lã, leva também esta panela. Mas não ficamos por aqui. Reparem. Quem levar as duas lindas colchas, o cobertor e a panela, fica também com estes três tachos (risos dissimulados). Atenção, atenção, ó meu bom povo, e quem levar a mensagem de esperança que aqui trazemos, leva também um bilhete para um jogo de futebol à sua escolha (aplausos fortes). Mas não ficámos por aqui. Não. Quisemos ir mais longe. Trouxemos estes pequenos computadores portáteis para distribuir por todos os mineiros desta mina, para que desse modo eles possam participar activamente no desenvolvimento do país (aplausos). Concidadãos, a realização aqui da reunião do Conselho de ministros é um acto eminentemente democrático e solidário....

Concluído o comício, seguiram-se os cumprimentos e a troca de galhardetes, e os convidados retiraram-se para que se pudesse iniciar o Conselho. Quando os ministros tomavam posição à mesa, um ou outro tirando o capacete para arejar as ideias, ouviu-se um enorme estrondo, tudo estremeceu, as luzes apagaram-se, choveram pedras e terras. Houve gritos e alguma correria em volta da mesa. Um minutos depois tudo terminara, e um silêncio momentâneo abateu-se sobre o Governo.

Cataclismo? Acidente? Sabotagem? Atentado? As respostas a estas questões são da competência de técnicos competentes aos quais compete chegar a conclusões técnicas.

(continua)

*Quaisquer semelhança com pessoas ou factos reais é pura coincidência.