sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Apocalípticos

Ninguém nos disse a verdade, a verdade já não tem defensores à face da Terra, ela é demasiado difícil de conceber e os que nela penetram serão cada vez menos numerosos. O século assistiu à morte das ideias claras e distintas, não nos entendemos sobre nada, fora dos subentendidos, das conveniências e dos interesses, por todo o lado os equívocos terão lugar. Não nos entendemos sobre nada, nem cremos já em mais nada, para crer em alguma coisa nos nossos dias é preciso ser um alucinado, todos os nossos espíritos mais excelentes tornaram-se trágicos, isso demonstra que já não têm fé. A religião não é mais do que um elemento da ordem e, pior ainda, de uma ordem para o caos e a morte, aqueles que se esforçam por vivê-la serão os heréticos de amanhã e amanhã a heresia atestará a fé de novo tornada sincera, assistiremos em cem lugares à explosão dos sistemas, depois ao formigueiro das seitas, mas não seremos salvos pelo fervor de alguns, nem pela espontaneidade de outros. É já demasiado tarde, entrámos no turbilhão, não mais escaparemos ao que nos arrasta e sabemo-nos condenados.

Albert Caraco, Bréviaire du chaos, L’Age d’Homme, Col. Amers, Lausanne, 1999.

NOTA: «Grande praguejador, pensador, profeta, espírito universal de vasta cultura, Albert Caraco nasceu em 1919 numa família sefardita do Levante, emigrou com os pais pela Europa central (Viena, Praga, Paris) e refugiou-se na América do Sul nas vésperas da Segunda Guerra Mundial. Constatando, de regresso a Paris, o desastre produzido nos homens e nas nações por este conflito ideológico, retardou o seu suicídio em atenção aos pais. Durante a espera do fim que fixou a si próprio -- e que sobreveio no dia a seguir à morte do seu pai, em 1972 -- passou várias horas de cada dia a encher cadernos com uma escrita mecânica e hieroglífica, sem emendas.
A obra inclassificável de Albert Caraco é, ainda, parcialmente inédita. As suas Obras Completas estão em curso de publicação na L'Age d'Homme, e contam actualmente vinte e dois volumes, das quais o Breviaire du Chaos, uma das suas obras mais breves, constitui talvez a quintessência.»