terça-feira, 13 de julho de 2010

Memórias Intactas

Talheres talhados em madeira, obra de pastor. Alguns copos antepassados, de planta nobre e rural. Um velho dicionário ilustrado, minha primeira janela do diverso. Fotografias incompreensíveis: um remoto volkswagen, a praia onde aprendi o mar, a tabacaria sem tabuleta, os dois homens com quem bebi a primeira cerveja. É escasso o meu espólio de objectos, poucos e todos tocados pelo tempo. Mas, meus filhos, de quantas coisas mais vos poderia falar. Do fresco sabor a barro da água guardada em quartas, do ofício do pão, do chão escaldante, do canto chão. Do ritmo paciente de pisar azeitonas. Da maciez da terra lavrada. Do caminhar entre o trigo. Da cal e da gente, de gente calada de quem recordo lições simples e raras. Ouço-me crescer no silêncio de tudo isso, cujo único valor é, talvez, dizer-vos de onde vim. Mas não se enganem, não tenho nostalgia do tempo que passa sem remédio, nem da parte de mim que passa com ele. Apenas a melancolia de só no momento de um mundo desaparecer sabermos com rigor o que dele ficou em nós.