terça-feira, 6 de abril de 2010

Uma fábula

No vaivém espacial de transporte — tínhamos feito um voo bastante longo. Americanos, Europeus de diversas nacionalidades e quase metade de Tonquineses e Anamitas, companheiros de pequena estatura, inteligentes e agradáveis — se se quiser, dito grosseiramente, Brancos e Amarelos. Professores e jornalistas na força da idade — a excursão não tinha sido verdadeiramente perigosa, apesar de não ser desprovida de riscos; não tinhamos nem mulheres nem crianças a bordo.
Não estávamos já muito longe do desembarque, da aterragem melhor dizendo. Um milhão de milhas, perto disso. É espantoso a que ponto se distinguem com precisão, neste género de aparelho, todos os ruídos, sobretudo os de natureza técnica, mesmo que sejam extremamente débeis. Tudo isso se passa no inconsciente e acompanha o funcionamento automático, embora reencontremos a lucidez total à menor dissonância.
Algo parecia funcionar mal, vários sinais luminosos piscavam, minúsculos, e por cima de tudo um zumbido. Um engenheiro chegou lá de trás e foi ao cockpit — ainda não o tinha visto após o início do voo. Depois chamaram a tripulação — o médico, as hospedeiras, os vigilantes desapareceram uns após os outros na cabina de pilotagem.
Era inquietante. Imediatamente antes, a atmosfera era mais ensonada do que ruidosa; daí em diante o silêncio tornou-se opressivo. A situação era pouco habitual sem ser excepcional. Quem embarca em qualquer veículo sabe que corre riscos, mesmo que o faça todos os dias. Noutro tempo oferecia-se um sacrifício a Neptuno antes de uma viagem marítima, aqui o caso era mais com Apolo.
A situação não tinha novidade para mim; tinha-a já vivido diversas vezes. Era a primeira grande divisão depois de uma ameaça de perigo. Os iniciados retiram-se. Antes do assalto, os oficiais reunem-se e discutem a situação, em local coberto ou numa colina. O cirurgião faz o mesmo com a sua equipa, antes de uma operação. O doente jaz, à parte. O que se discutia ali não podia, pois, senão angustiar. Aqui, eram os técnicos: o capitão e a sua tripulação. Eram eles os iniciados e debatiam a nossa sorte.
O simples soldado, o paciente, o passageiro, esperam o veredicto dos iniciados com uma inquietação compreensível por múltiplas razões. Em primeiro lugar, está-se à espera de revelações sobre a natureza e a dimensão do perigo. Tal implica confiança. Se ela não existe, põe-se imediatamente o comando em questão. O iniciado é também o que sabe e pode; mesmo em relação ao técnico, acreditamos que tenha uma relação mais íntima com o destino.
É preciso não escamotear um terceiro elemento: o iniciado poderia usar o seu conhecimento directamente em seu proveito, em detrimento dos profanos. Para voltar ao nosso caso, também aqui isso seria possível.
Entretanto, o silêncio tinha-se tornado total. Pareciamos dormir ou deslocarmo-nos sem ruído; o ar não era tão puro como pouco antes. Era preciso acabar com o fumo.
Muitas coisas nos passam pela cabeça durante este género de espera. Depressa nos tornamos mais pessimistas. Que se poderia esperar ainda em caso de avaria ou mesmo de black-out? Rapidamente faria muito frio. Seriamos, em seguida, satelizados no sistema como um monumento congelado ao progresso. Ou então aproximar-nos-iamos de novo da terra e converter-nos-iamos em calor dissipado na atmosfera; seria o retorno aos átomos, bem preferível à entropia, semelhante à morte voluntária de Peregrinus Proteus.
De qualquer modo, restavam-nos ainda algumas hipóteses. Como a baleia a sua cria, o transportador abrigava no seu seio um engenho de pequenas dimensões. Podiamos soltá-lo como a um barco de salvamento. Para dizer a verdade, éramos muito mais numerosos do que é hábito, estávamos mesmo em excesso. É preciso com frequência recorrer a isso nas viagens de lazer ou mesmo de exploração. É imprudente, mas a afluência é demasiado grande.
Daí vinha a minha inquietação. Em caso de abandono da nave, metade dos seus ocupantes, talvez mesmo mais, seria constrangida a ficar. Sem dúvida nenhuma, os técnicos que conferenciavam na cabina de pilotagem imaginavam-no também, e decerto mais amargamente do que nós. Sabe-se de catástrofes nas quais o capitão e a sua tripulação se escaparam sorrateiramente antes de o navio submergir com os passageiros.
Põe-se pois a questão da confiança — uma questão que diz respeito a algo mais importante do que cada um sabe e pode. Neste aspecto, nada havia a temer; Hartung era um capitão da velha escola, um daqueles que permanecem a bordo até à última, ou que sucubem juntamente com o seu navio.
Ei-lo que saía. Como me tinha cruzado com ele diversas vezes, percebi de imediato qual era a situação. Tinhamos de abandonar a nave. O imediato tomava o comando da nave de salvamento; Hartung atribuira-lhe o pessoal necessário. Ele próprio permaneceria no seu posto com o resto da tripulação. No que dizia respeito aos passageiros, não tinham mais do que se entender entre eles. Comunicou-nos os pesos de acordo com os cálculos dos aparelhos — para a tripulação, para os passageiros e para o material indispensável.
Éramos em número demasiadamente elevado para que se pudessem esperar resultados de uma negociação geral — deveríamos confiar a nossa sorte a um comité de sábios. Na sala de jantar grande, repartiamo-nos por mesas de doze e tinhamos já travado conhecimento. Hartung propôs que cada mesa delegasse um homem de confiança para deliberar na sala de fumo. Pareceu-nos justo; o número de votos ficou assim reduzido a vinte e cinco.
A deliberação prolongou-se durante muito tempo e a luz a bordo estava já fraca quando o responsável nos comunicou o resultado. Este correspondia manifestamente à vontade de salvar o máximo de cabeças, e a escolha do comité recaíra numa espécie de ovo de Colombo cuja evidência impressionava à primeira vista. Ir-nos-iam pesar e introduzir no engenho começando pelo mais leve até que fosse atingido o peso total que nos fora prescrito.
Eu teria preferido que se tirasse à sorte, como já se praticava na Idade Média junto ao cadafalso. Mas uma decisão é uma decisão e não havia nada a objectar contra esta. Sobretudo no que me dizia respeito, já que estava em convalescença e tinha emagrecido muito. Com efeito, assim que as pesagens começaram, encontrei-me entre os happy few, se assim posso dizer.
Além do mais, o que o resultado tinha de espantoso era que os pequenos Asiáticos se foram colocar, um após outro, do lado bom, como no Julgamento Final, até estarem reunidos quase por completo, à excepção de alguns pesos pesados, como não faltam também na raça deles.
Porventura era um acaso desprovido de intenção. Se houvesse entre eles um Maquiavel, tinha jogado magnificamente. Se como colegas especialistas nos tinhamos entendido bem, surgia agora uma divergência. A harmonia estava ameaçada — tanto mais que a respiração se tornava difícil. Ouvi perto de mim a voz do médico: «Se houvesse crianças a bordo, talvez a pesagem tivesse um sentido!» Só Don Capisco tinha conservado o humor: «Enfim, conseguimos atingir a felicidade pelo maior número.»
A atmosfera não se prestava nada a este género de brincadeiras. Tornava-se cada vez mais desagradável, leia-se primitiva. Censuravam-se mutuamente a cor da pele. Porém, o ambiente era tão sombrio que não era já possível discerni-la. Tinham-se formado dois partidos que se enfrentavam ameaçadoramente, separados pela tripulação, para a qual esta evolução manifestamente agradava. Depois de todas aquelas deliberações e cálculos, era o momento de aceder à saída de emergência; os primeiros tinham já posto o cinto; as luzes apagaram-se. Ir-me-eis perguntar como foi que consegui sair. Bem!, de uma maneira que há muito deu provas: acordando. Certo, mas onde? — a questão permanece em aberto.

Ernst Jünger, Rêves, trad. de Julien Hervier, Fata Morgana, 1999.