sexta-feira, 16 de abril de 2010

Five o'clock tea

Eu canto o chá das cinco que minha Mulher ofereceu,
às seis da tarde, ao longo da barra azul da sala,
Àquela senhora inglesa que o outono nos adiantou,
Tão distinta, discreta, boa e doce,
Naquela cadeira exposta ali na sala aos destinos
Das pessoas que vão entrando;
Aquela senhora de modos tão finos
E de dentes tão brancos onde já um ramo de tempo deita sombra:
Aquela senhora, ali, inglesa, no seu vestido de miosótis,
De que não me atrevo a pedir ramo algum
Enquanto bebo o meu chá, ao lado dela, pensando
Em tanto miosótis que tenho visto e me tenho acanhado de pedir —
Ou por não ser tempo de miosótis e ficar feio andar augado,
Ou por não haver outra coisa nos jardins senão miosótis e não me
nnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnapetecer, francamente...
E assim, imobilizando o pálido yes
E falando francês àquela senhora inglesa,
Eu canto o chá dourado que Minha mulher lhe oferece —
Minha Mulher, que não é inglesa mas gosta de pessoas de Inglaterra,
E pôs a barra azul na sala, por poesia,
E escureceu os móveis numa tarde toda dourada
Em que mais triste se sentia.

A senhora inglesa,
Que uma amiga nossa que já esteve em Inglaterra nos trouxe para
nnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnneste dia;
A senhora inglesa de olhos claros;
A senhora inglesa que só disse palavras correctas, coisas correctas,
E insinuou, na tarde, uma sinuosidade e uma harmonia
Só com o seu sim ou seu não,
O seu braço longo, desistido, inapetente, mas belo
Precisamente porque é já o braço para o neto esfregar as gengivas
E roer, e rir e doer, meses depois de nascer,
Como um belo guizo de oiro que só mesmo feito em Inglaterra!
O braço que não ocupa lugar e mede pela asa da chávena
(À distância a que a senhora inglesa a põe nos seus dedos
nnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnncomo asas)
O abismo que vai da senhora inglesa a um lugar da Inglaterra,
E desta hora do chá a uma outra hora lá dela,
Íntima, doce, única, rara, ampla, esquecida,
Que não existiu talvez senão para ser lembrada
Em minha casa, esta tarde, e a comer short-bread
Que é assim a vida...

Vitorino Nemésio, O Bicho Harmonioso, Coimbra, 1938, reunido em Poesia (1935-1940), Bertrand, Venda Nova, 1986.