sábado, 20 de março de 2010

Um hábito público

A pequerrucha Bebé, aos cinco anos, quando possui inteiramente a palavra e a frase — começa a mentir. Bebé mente. (...) Em Portugal a mentira da criança faz rir, é uma graça: prova o engenho, a faísca, a agudeza do pequenino cérebro. Bebé começa a mentir para ter triunfozinhos, sonoros de beijos. Começa por negar o que faz — o que é o germe da covardia: — termina por contar o que os outros não fizeram — o que é a semente da calúnia. De resto, aqui a mentira é um hábito público. Mente o homem, a política, a ciência, o orçamento, a imprensa, os versos, os sermões, o romance — a arte, e o país é uma grande consciência falsa. Vem da educação.
A criança cresce na mentira. É um cesto roto esta criança — diz a família rindo. E não sabem que dizendo graciosamente que é um cesto roto dizem tacitamente: será portanto um intrigante, um falso, um caluniador e um covarde. Às meninas sobretudo — como se supõe que elas não têm relações oficiais ou publicidade em que a mentira possa prejudicar — consente-se a mentira, como uma alegria e uma vivacidade inofensiva! Inofensiva! Como se não importasse menos que o homem minta na publicidade do jornal — do que a mulher no recato da família. O facto é que Bebé, o loiro, o engraçado anjo — mente!

Eça de Queiroz, Março de 1872
Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão, As Farpas, coord. de Maria Filomena Mónica, Principia, S. João do Estoril, 2004.