quarta-feira, 17 de março de 2010

À espera de que o cão adormeça

Estou numa velha casota de cão, todo encolhido, com os joelhos a tocarem-me no queixo. Através das ranhuras entre as tábuas vejo crescer uma praça diante de mim, vazia, pelo menos até às pequenas árvores novas que a rodeiam. Costumava ser aqui a aldeia onde vivia. Ontem terminou a demolição, deitaram abaixo o último pardieiro, os habitantes foram colocados em dúzias de vagões e levados para as suas novas casas, na cidade. A área deverá ser florestada. Eu escondi-me, estou na casota do cão, não quis partir.
O sol brilha ainda, baixo, na minha frente, mas estou à sombra, na casota do cão, o qual está sentado firmemente apoiado nas patas da frente, não dorme há muitas horas, tem tentado, com todas as suas forças, não adormecer. Confio na vigilância do cão: é por isso que, de vez em quando, passo pelo sono. Vejo ali, ainda, os guardas venatórios e o guarda-florestal: olham fixamente para a casota do cão, a última naquele vasto terreno vazio, esperam que o cão adormeça. Atrás deles, erguem-se pilhas de árvores novas.
Por vezes, a cabeça do cão tomba de exaustão mortal. Nessa altura, os guardas venatórios avançam alguns passos. O cão regressa, no tempo de um piscar de olhos, ao estado de alerta, e exibe os caninos, os guardas florestais recuam para além do alcance da corrente, e o cão morde o seu próprio flanco, de boca bem aberta, afastando o sono com a dor. E de novo se senta, direito como uma efígie, olhando nos olhos quem está. Em tempos, guardou a propriedade do lado; uma vez que ela já não existe, só se tem a si próprio para proteger.
Não sei quando passei pelas brasas; estava de novo acordado. Vejo o cão mostrar os colmilhos e enterrar os dentes no seu próprio corpo, vejo os guardas venatórios a retrocederem até uma distância segura. Ouço:
— Senhor Guarda-Florestal, peço autorização.
— Não, disse o guarda. — Não autorizado, por enquanto. Segundo os estatutos, os cães vadios são abatidos entre as árvores. Esperemos: ele vai adormecer, plantaremos árvores à sua volta e será, então, altura.
O cão morde o sono para que este se vá embora, do mesmo modo que um dia mergulhou sobre as moscas emaranhadas no seu pêlo encaracolado. Estou-lhe grato, embora ele nem saiba que estou aqui, na sua casota. Estamos em pleno dia, mas as suas pálpebras estão a fechar-se, dando lugar à escuridão do sono.
Sou acordado por um breve ganido. É o cão a chamar pela primeira e última vez. Os maxilares fecharam-se, penetrando-lhe profundamente no corpo, para nunca mais se abrirem. O cão jaz imóvel: mordeu o sono até à morte. Debaixo da sua pele rasgada sobressaem restos de costelas partidas. Nada mais me protege, mas não importa – para dizer a verdade, a luta daquele cão inútil pela sobrevivência estava a começar a irritar-me, e a ficar cansado daquela minha posição dentro da casota; o pescoço e a coluna estavam rígidos e insuportavelmente dormentes. Qual a razão de ficar, já não há aldeia, o melhor é ir para a cidade, os guardas venatórios já estão a afastar a cabeça do cão para o lado com os canos das espingardas; vou, ajudá-los-ei a reflorestarem este lugar... Ao esticar as pernas encolhidas, demoli a casota por dentro. Saio, dizendo:
— Não querem lá ver, hein? Tive sorte: de certeza que era um cão raivoso.

Jerzy Ficowski, Waiting for the dog to sleep, tradução em língua inglesa de Soren A. Gauger e Marcin Piekoszewski, Twisted Spoon Press, Praga, 2006.