Prova da existência de Santa Eulália
Conheço este povoado desde a infância. Ao anoitecer, o pomar do prior esvazia-se de aves e o sacristão fecha a sacristia, aparece luz na janela do presbitério e um bando de anjos paroquianos vêm, voando, passar a noite na torre sineira. As vacas, de volta ao estábulo, saúdam-nos com gregoriana gravidade. Levanta-se um nevoeiro denso, inçado de mosquitos.
Anoiteceu já. Até de manhã os comboios não param na estação local, todos dormem ou dormitam, a estação encerra. Só as raparigas vão passear pela praça da cidade, atraentes sob a luminescência das lâmpadas, miúdas coloridas que dão nas vistas. Até mesmo Jolka, na sua tenra idade, vagueia por lá com um par de maçãs metido no sutiã, antes de os seus próprios seios terem amadurecido. Aborda-me: «Por favor, por favor vem comigo!»
Não posso. Apanhara o último comboio para ver um tio moribundo que tinha qualquer coisa a dizer-me. Fiz uma carícia conciliadora nos seios de Jolka; as hastes das maçãs, viradas para fora, sobressaem sob a blusa, imitando mamilos. Jolka ronrona quando lhe toco, pestaneja como se a casca dos frutos roubados no pomar do prior fosse a sua zona erógena mais sensível.
Parto, penetrando a escuridão, rompendo pelo meio dos mosquitos como se fossem espinhos. Não tenho tempo de os afastar, não posso atrasar-me, o meu tio moribundo, prior da paróquia, tem alguma coisa a dizer-me. Não teve nada para me dizer durante toda a minha vida, esteve evidentemente a guardar-se para este momento.
Sou recebido pelo choro da governanta, abafado num lenço preto. O bom prior partira, fora dormir para junto do Senhor antes da ordenha da noite. Jaz no seu quarto, pediu para ninguém entrar. Sou cumprimentado pelo diácono. O falecido padre esperara, queria partilhar com o sobrinho a sua mais recente descoberta teológica: a prova da existência de Santa Eulália. No ano anterior desenvolvera a prova da existência dos anjos; daí em diante eles acorreram e alastraram pelo presbitério, domesticados, exibindo as plumas. Expulsaram as gralhas até das mansardas e das chaminés. «Na luta entre o bem e o mal, o bem triunfou», diria ele por essa altura. O seu coração era humilde e o temor do divino impediu-o de tentar encontrar a prova da existência de Deus. Terminou o assunto dos anjos e começou a trabalhar nos santos, mas apenas chegou à Santa Eulália. Boa noite.
O repicar dos sinos acorda-me como uma dor de cabeça. Os anjos, espantados da torre sineira, voam em pânico sobre o pomar do prior, rosados do sono e da aurora. Espalham penas durante os seus voos semiconscientes. Um deles esvoaça até às cancelas da igreja e, arrastando as asas, bebe da pia de água benta; o resto pousa sobre os ramos das pereiras e macieiras. Um fruto, que os vermes profanaram a partir do interior, estremece e tomba no chão. Embora tenha sede, não o vou apanhar. O primeiro comboio da manhã parte dentro de momentos. Na plataforma: Jolka, sonolenta e gelada. Subo e entro, Jolka tira de dentro da camisola duas maçãs cheirosas e bem aquecidas e entrega-mas para a viagem. Vejo-a através da janela a ficar cada vez mais pequena. Ficou, sozinha, de cabelo ao vento, de peito completamente liso e ar de criança, nas cores irreais da madrugada, ilustração vulgar retirada das vidas de santos.
Jerzy Ficowski, Waiting for the dog to sleep, tradução em língua inglesa de Soren A. Gauger e Marcin Piekoszewski, Twisted Spoon Press, Praga, 2006.