quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

A mesma frase

A minha mãe tinha uma boneca russa que o meu pai lhe trouxera de Paris. Enlouquecia os meus irmãos que, ao abri-la, dentro dela aparecesse outra boneca igual. Pensavam que era o cúmulo do anormal. Eu, mais ingénuo, acreditava que os seres humanos eram constituídos dessa forma. Assim, dentro do meu professor de matemática haveria outro professor de matemática um pouco mais pequeno e outro e outro e outro... Tinha um colega coxo, chamado António, que por vezes caía pelas escadas. Estava sempre à espera que se partisse para ver sair de dentro dele um pequeno exército de antónios a coxear pelas instalações do colégio. Mesmo quando me disseram, na aula de ciências naturais, que por dentro éramos feitos de outro modo, sempre me imaginei a mim mesmo cheio de joões que diminuíam de tamanho à medida que se aproximavam do mais fundo de mim mesmo.
Já crescido, quando, ao estudar as regras da composição literária, procurei compreender as diferenças entre continente e conteúdo, lembrei-me frequentemente da boneca russa e compreendi que não há conteúdo mais eficaz do que o próprio continente, mas não consegui aplicar essa ideia à literatura. Mesmo sabendo, pelo menos em teoria, que no fundo só há forma, relaciono-me com o mundo como se fossem coisas diferentes. Por isso, quando vejo uma boneca russa nas prateleiras de uma loja, abro-a, e abro-a até ao fim, na esperança de encontrar lá dentro algo diferente da própria boneca. Mas nunca aparece nada. E, talvez, seja esse o seu segredo. Não se conhece ninguém que passe com indiferença diante de um desses artefactos, embora não haja nenhuma possibilidade de que a sua abertura nos faça deparar com uma surpresa.
A boneca russa da minha mãe estava numa espécie de toucador que havia no seu quarto. Por vezes, escondido debaixo da cama, via como ela abria e fechava o artefacto soviético procedente de Paris. Dava a impressão de procurar dentro da boneca alguma coisa que não encontrava dentro de si mesma. E abandonava-a sempre com um gesto de decepção, para riçar as pestanas. Porém, creio que se tratava de uma decepção activa. O humor é, segundo Bergson, uma decepção da espera. As bonecas russas escondem um sistema filosófico que provoca um sentimento semelhante. Suspeitamos que a vida, a ser alguma coisa, é essa sucessão do mesmo dentro do mesmo. Entendi isso desde pequeno, perante a perplexidade dos meus irmãos e da minha mãe, mas deixei de o entender quando cresci. E tudo porque não consegui escrever uma frase que contenha dentro de si a mesma frase e a mesma frase e a mesma frase...

Juan José Millás, Los objetos nos llaman, Booket/Seix Barral, Barcelona, 2009.
Edição portuguesa: Os objectos chamam-nos, Planeta, Lisboa, 2010.

NOTA: Como atenuante da transgressão que constitui a minha tradução e reprodução deste texto, invoco o facto de ela constituir um convite muito claro para ler o livro todo. Muitos críticos e bloguistas literários que por aí pululam dão a ideia de que a literatura só existe para que eles possam falar de (leia-se noticiar) livros. Um livro como este, de Juan José Millás, é mesmo preciso ler, porque nada substitui a literatura que o é. E como a partilha do que se gosta é muito importante, dedico a tradução ao meu Amigo OF, que vai ler o livro de certeza... Já são dois exemplares vendidos.