terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Memórias Intactas/ A primeira alegria do poema

A obra de Eugénio de Andrade espelha uma consciência da natureza radical da palavra, no sentido em que Eduardo Lourenço diz que «ela é o impronunciável que paradoxalmente se pronuncia deixando intacta a essencial impronunciabilidade de tudo». Essa radicalidade exprimiu-se por um desnudamento, um progressivo encostar-se ao silêncio, uma aspiração à música, pela leveza e limpidez de um vocabulário que é, só por si, um universo poético — o corpo, as mãos, a boca, o rosto, o desejo, o branco, as aves, a água e a terra, a luz... e algumas sombras. O poema, retrabalhado até à exaustão, traduz a «procura exasperada de um equilíbrio entre visão e expressão» — um labor plástico que nos guia, como notou António Ramos Rosa, «para a interioridade do visível». Poeta do meu despertar, com as suas palavras, tão escolhidas, aprendi a primeira alegria do poema.

(Póvoa da Atalaia, 19.1.1923 - Porto, 13.6.2005)