sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Os Relógios

O relógio da Assunção deu duas sonoras badaladas: o seu longo retinir pôde ser escutado no silêncio da noite. Nem todos dormem em Olbena. Segundos depois, soaram na Casa Consistorial outras duas badaladas. Às doze tocaram matinas nas franciscanas Descalças da rua del Abad. Se fosse véspera de Natal, não teriam tocado a esta hora; estamos a 15 de Dezembro. No Natal tocam matinas nas Descalças às dez da noite.
As badaladas da igreja da Assunção dominam todas as outras; os relógios das casas sentem-se subjugados pelo velho relógio da igreja gótica. Entre os particulares, há-os de caixa e redondos, com mostrador branco e grossos ponteiros. Haverá que contar também os de mesa; no antigo casarão dos López de Ledona – na qual se encontra agora Salvadora – o relógio de bronze que está assente no mármore de uma consola, de pés dourados, acaba também de dar, com timbre argentino, as duas da madrugada. Neste mesmo momento, o doutor Casal, sentado à sua mesa de trabalho, tirou o relógio de bolso de ouro, premiu a mola, a tampa levantou-se, e o doutor viu que a hora estava certa. Junto do livro que estava a ler, no tabuleiro de nogueira, vê-se um cartão, com letra inglesa em relevo, que diz: Salvadora López de Ledona. E por baixo: Viúva de Argüelles. A cartolina está debruada a negro.
As duas badaladas da Assunção dilataram-se pela cidade e seus arredores. Não são muitos os que as ouviram; na sala de trabalho dos Correios, o relógio marca exactamente duas horas. O comboio da 1:45 traz a correspondência; o saco, acabam de o deixar na sala; às sete da manhã farão a distribuição; a entrega da correspondência começará às oito. Há, numa sala, sumida na penumbra, um relógio de bolso colocado sobre uma mesa, entre frascos e caixinhas com pastilhas; uma enfermeira olhou para ele, ao escutar as badaladas da Assunção, e viu que também marcava as duas; em seguida, tilintou uma colher dentro de um copo ao mexer uma poção.
Na parte de trás da botica de Lázaro existe um relógio; não poderia faltar, tendo o farmacêutico que ter em conta o tempo, em certas preparações. O relógio, na parede amarelecida, assinala duas horas menos três minutos. Apareceu um lavrador – que não tem relógio – à porta de sua casa, entorpecido por um sonho pesado; queria consultar as estrelas; há-de partir muito antes do amanhecer. Bruscamente, fechou a porta sem levantar os olhos para o céu. O relógio da estação, o das plataformas, relógio de duplo mostrador, está certo; marcou as duas quando tinha de as marcar; nem um segundo a mais, nem um segundo a menos. Num pequeno quarto do Casino falam, sob a lâmpada, três ou quatro noctívagos; não dão conta da passagem das horas.
Na viragem da noite há um relógio que há-de marcar uma hora decisiva; o de um viajante que chegou a Olbena no comboio da 1:45; hospeda-se no hotel do Comércio. Existe outro relógio, o de um poeta, que assinala as horas, estas horas espessas da noite alta, sem que o poeta, entregue ao sonho, saiba que se vai aproximando dele, conforme ao andamento do relógio, uma hora de sentimentos revoltados. Na sacristia da Assunção vê-se um relógio de caixa, e é igualmente de caixa um outro que se exibe na antecâmara do amplo salão da casa solarenga de Salvadora. Os dois relógios marcaram, com diferença de minutos, as duas da madrugada. Pode haver em Olbena algum outro relógio que, a estas horas densas, dê as suas badaladas, com timbre agudo ou com timbre enrouquecido; todos os relógios da velha cidade cumpriram a sua missão; a noite vai deslizando até à madrugada, a qual dará lugar à aurora, cuja aurora fará resplandecer o dia; um dia novo em Olbena; novo e velho.


Azorín, «Los Relojes», primeiro capítulo de Salvadora de Olbena, em Azorín, Obras Selectas, prólogo de Mário Vargas Llosa, Col. Austral Summa, Espasa-Calpe, 1998.