terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Eric Rohmer

Morreu Eric Rohmer, um dos cineastas que me fazia ir ao cinema. Ao contrário do que se diz, não creio que tivesse sido um escritor falhado. Era um artista completo. Certamente um dos últimos, em mais do que um sentido.
Há uns anos, a caminho de um filme de Rohmer, aconteceu-me um episódio, que então descrevi, e agora aqui publico, à maneira de homenagem:

Abordou-me de longe, incerto da direcção dos meus passos. Enquanto me aproximava tentei perceber quem seria, sem resultado. O seu sorriso deixava-me na dúvida. Admiti tratar-se de alguém que conhecia ou conhecera, mas de que não me lembrava. Era possível e já me tinha acontecido antes. Mas o meu ar devia ser reticente, porque logo o ouvi dizer:
— Estou assim com tão mau ar?
Murmurei qualquer coisa, confuso ainda pela infidelidade da memória. Perante a minha turvação, o homem continuou com um sorriso pequeno mas triunfante:
— Posso mostrar-lhe uma coisa?
As dúvidas dissiparam-se de imediato. Procurei desfazer a situação:
— Ouça, estou com pressa....
Pôs-se sério.
— Posso mostrar-lhe uma coisa? —. O tom era quase de repreensão, os olhos bem abertos. Usava óculos de armação leve e discreta.
— Ouça…— repeti timidamente — estou a dizer-lhe que não vou poder ficar aqui, estou com pressa.
Deu um pequeno passo atrás para se colocar a uma distância apropriada e, com gravidade, desprendeu nova pergunta, lançada com inconfundível inflexão declamatória:
— Somos homens ou não somos? –. Esperou um instante pelo meu silêncio e, quase sem pausa, com inexcedível subtileza, retomou com doçura a interrogação inicial. — Posso mostrar-lhe uma coisa?
— Pode, mas olhe que tenho mesmo de ir — respondi com indecisão, mas vendo que só sairia dali quando ele chegasse onde tinha de chegar. Que fosse o mais rápido possível.
Baixou-se então e começou a dobrar lentamente, arregaçando, uma das pernas das calças de linho, imaculadamente brancas. Durante o tempo que a operação demorou não disse nada. Por toda a perna rosada serpenteavam cicatrizes que a deformavam visivelmente. Após alguns segundos, desdobrou com cuidado a perna das calças, endireitou-se, transferiu o peso do corpo para a perna que acabara de mostrar a fim de aliviar a outra do esforço momentâneo, e continuou com a mesma gravidade:
— Isto que viu, tenho pelo corpo todo. Vê a cicatriz na cara? Tenho por todo o lado. Foi um acidente — fez uma pausa breve e prosseguiu — Um acidente que me levou a esposa e a filha mais velha.
Fungou com ar compungido.
— Fiquei só com a pequerrucha — disse, semicerrando os olhos como se fosse chorar. Esperou uma fracção de segundo e avançou sem me dar tempo a articular palavra:
— Agora vou mostrar-lhe outra coisa —, e um envelope dobrado apareceu-lhe subitamente nas mãos.
— Tenho muita pena, já percebi onde quer chegar, mas nem sequer tenho dinheiro comigo, só o suficiente para comprar o bilhete do cinema, que aliás está a começar....
— Pena?! — disse inflamando a vibração vocal — não quero que tenha pena, tudo o que quero é fazer um empréstimo que pagarei assim que puder! Veja! — e estendeu-me os papéis com indignação e autoridade — Veja!
Sem esperar sequer pelo meu gesto, a cena era toda dele, desdobrou-os e estendeu-mos para que pudesse ler. Era o último aviso de pagamento de uma conta de electricidade cujo limite era o próprio dia em que estávamos. Deu-me exactamente o tempo necessário para eu perceber de que se tratava e franziu o sobrolho:
— Somos homens ou não somos?
Parou um instante, recuou a cabeça e silabou, começando muito devagar e intensificando progressivamente o tom e a altura:
— Será que ainda há homens?
Apelava à virilidade e à honra. Era o tudo ou nada.
– Será que ainda há homens? – repetiu, agravando o olhar. Retorqui incomodado:
— Já percebi, compreendo que está em má situação, mas não lha posso resolver, não tenho dinheiro comigo, só o suficiente para o bilhete do cinema e estou em cima da hora...
— Só quero fazer um empréstimo. É um empréstimo. Fosse comigo..., eu saberia o que fazer...
Percebendo que o tempo urgia e me estava a perder, ainda atirou, duro, entre a ironia e o sarcasmo, evidenciando a futilidade do meu propósito:
— E tem mesmo de ir ao cinema?!
Apeteceu-me sugerir-lhe que apresentasse o caso num palco de que ouvira falar, um grupo de teatro que apresentava um trabalho cujo propósito era, ao que parece, questionar o teatro e as suas convenções, que, segundo os respectivos actores, se baseiam na ilusão da verdade. Lá, o público podia intervir e tudo se poderia passar, sem recurso às convenções e sem ilusão de verdade: nesse momento real, sim, estaria a acontecer teatro. Mas tudo isso se estava a passar num auditório do Hospital Miguel Bombarda e decerto a minha indicação seria mal interpretada.
Lá fui ao cinema, coisa que faço hoje raramente, ver o último filme* de Rohmer. Um filme exemplar sobre os meandros difíceis do verdadeiro e do falso.

*Tratava-se Triple Agent (2004)