Retentiva duas vezes
A Retentiva que, num ritmo muito seu e com as características que se lhe conhecem desde o seu início em Dezembro de 2009, passou agora a ter uma versão, ou extensão, aqui.
A Retentiva que, num ritmo muito seu e com as características que se lhe conhecem desde o seu início em Dezembro de 2009, passou agora a ter uma versão, ou extensão, aqui.
Pensa nisto: quando te
oferecem um relógio, oferecem-te um pequeno inferno floreado, uma corrente de
rosas, um calabouço de ar. Não te dão somente o relógio, que contes muitos e
bons e esperamos que dure porque é de marca boa, suíço com âncora de rubis; não
te oferecem somente esse pedreiro laborioso que atarás ao pulso e passearás
contigo. Oferecem-te – não o sabem, o terrível é que não o sabem –, oferecem-te
um novo pedaço, frágil e precário, de ti mesmo, algo que é teu, mas que não é o
teu corpo, que tens de atar ao teu corpo com a sua correia, como um bracinho
desesperado dependurando-se no teu pulso. Oferecem-te a necessidade de dar-lhe
corda todos os dias, a obrigação de dar-lhe corda para que continue a ser um
relógio; oferecem-te a obsessão de dar atenção à hora exacta nas montras das
joalharias, no anúncio da rádio, no serviço telefónico. Oferecem-te o medo de
perdê-lo, de que to roubem, de que caia ao chão e se parta. Oferecem-te a sua
marca, e a segurança de que é uma marca melhor do que as outras, oferecem-te a
tendência de comparar o teu relógio com os demais relógios. Não te oferecem um
relógio, és tu o oferecido, é a ti que oferecem para o aniversário do relógio.
Júlio Cortázar [1914-1984], Historias de Cronopios y de Famas, 1960.
A preocupação da verdade, do retrato parecido, é a doença da nossa literatura. A preocupação da verdade é inimiga da verdade. A verdade não gosta que a espreitem. O excesso de pormenores embrulha a concepção, a intenção. Já que não podemos simplificar a vida, simplifiquemos a literatura. A literatura, como a vida, está atravancada. Há que descongestioná-la: um só quadro numa parede, dois ou três móveis em cada sala. Simplifiquemos! Simplifiquemos! A falta de espaço é cada vez maior. Há que fazer peças com poucas personagens, romances com poucas páginas, telas com poucas tintas. Seleccionar! Seleccionar! Escrever muito é fácil. Escrever pouco é heróico, muitas vezes. Poucos escritores têm essa coragem.
António Ferro, Leviana, 1921
Uma coisa me consola, Eusébio. É que não fui eu quem cobriu Você de adjectivos, de apodos, de cognomes mais ou menos imaginosos. Não fui eu quem disse que Você era a pantera, o príncipe, o bota de oiro, o relâmpago negro, o coice para a frente, o astropata. Também não fui eu quem disse que o seu nome era Eusébio. Dar o Eu a Eusébio, que pretensão! Derive, derive e vire, vire e atire sem parança, Eusébio, seu genial tragalhadanças!
Alexandre O'Neill
xxxxxxxxxxxxPara a Teresa, em Trieste.
Tre Vie
«Era uma vez, era uma vez o dia em que quis lançar um olhar sobre o futuro. Nada mais do que um pequeno olhar. Após algumas visões preliminares daquilo que, muito rapidamente, deveria ainda vir do passado, perdi toda e qualquer curiosidade pelo dia de amanhã. Aprendi que o que tem de vir, vem. O que tem de acontecer, acontece. Isto é assim, e ultrapassa-me. O que me deixa pouco poder de decisão em relação ao momento que se segue. Digo: esse instante que se segue - cada instante que se segue - transborda de fatalidade. O que sempre escolhi após madura reflexão está destinado a ter consequências de que não prevejo os meandros. Elas são determinadas pelo tempo. Implantam-se nele e nele se perdem como tudo o resto. A única prova de que alguma coisa se produziu é podermos contá-la. O mundo é um formidável sótão de contos sobre aquilo que já foi contado. Tudo que foi, foi-o como foram os sáurios. Era uma vez.»
Assim se inicia o livro Mir auf der Spur, de Gregor Von Rezzori (Sur mes traces, trad. Pierre Deshusses, Editions du Rocher/Le Serpent à Plumes, col. Motifs, 2006). Citar Rezzori, autor que comecei a ler em circunstâncias particularíssimas que não vem ao caso contar aqui e que consta há muito da lista de autores referidos neste blogue, vem agora a propósito do livro de Claudio Magris, recentemente editado em português (Alfabetos, trad. Antonio Sabler, Quetzal), que, reunindo textos dispersos, recolhe o discurso proferido pelo autor triestino na entrega do Prémio Rezzori em 2007 («O Epígono Precursor»). Amigo de Georg Von Rezzori, Grisha para os amigos, Magris traça do autor um justo e pessoal retrato.
Rezzori não está publicado em Portugal. Pode ser que o prestígio de Magris contribua para que algum dia isso seja alterado.
O que chamamos literatura é a metaforização ilimitada da viagem - limitada - da vida. Não importa que esta projecção metafórica se realize a partir de um cenário imóvel, nem sequer que o seu artífice renuncie a toda e qualquer deslocação física: em todos os casos, o escritor viaja sob o impulso do imprescindível motor da imaginação. Sem esse motor, não existe qualquer possibilidade de criação artística. Poderíamos estar todos de acordo a este respeito. Recordemos, contudo, que todas as tentativas de iluminar o significado da imaginação se realizaram sempre, obrigatoriamente, em termos de viagem e, mais concretamente, recorrendo ao contraste entre a realidade empírica, quotidiana, do homem e «outra realidade» atravessada por um sem fim de trajectos que conduzem a todas as partes e, simultaneamente, a nenhuma. Imaginar é percorrer, à deriva, alguns desses trajectos. Escrever é tratar de superar a deriva através da ilusão de um rumo.
Rafael Argullol, «El "Viaje de viajes"» em Maldita perfección. Escritos sobre el sacrifício y la celebración de la belleza, Alcantilado, Barcelona, 2013.
Fausto é mais convincente, a partir da consciência moderna, quando se erige em discípulo de Bacon e, especialmente, quando confia na técnica como o principal fármaco do homem para afastar o pesadelo do isolamento cósmico. Porque, de facto, este fármaco só adquire pleno poder no momento em que o Deus espectral que nos ronda, e através da grande engrenagem de Newton, não só é tido como indemonstrável, mas é também declarado indesejável. A técnica é o sonho de autodeterminação do homem que coincide com a maior consciência de solidão.
Sob os impulsos deste sonho, a natureza chamada inanimada constitui um mero campo de experimentação. O máximo esplendor da utopia científico-técnica coincide com esta ideia, se bem que a moderna concepção matemático-experimental da natureza implique uma dupla repercussão sobre a imagem do homem. Por um lado, ao apresentar-se o cosmos como uma engrenagem perfeita, o conhecimento consiste em descobrir progressivamente as leis universais desta engrenagem. Por outro lado, ao ser esperançosamente factível a possibilidade deste descobrimento, o conhecimento deve facilitar, mediante a técnica, o domínio do cosmos. Conhecer é avançar até às leis ainda não reveladas, enquanto dominar é utilizar as leis já conhecidas. A «idade do progresso» converte o cientista em profeta e o engenheiro em messias.
Rafael Argullol, «La soledad después de Shakespeare», em Maldita perfección. Escritos sobre el sacrifício y la celebración de la beleza, Alantilado, Barcelona, 2013.
Se a literatura é uma
ficção que nos fala de uma verdade mais profunda, sinto que o meu livro é um
retrato muito exacto sobre como os princípios do totalitarismo devoram as
coisas que nos tornam humanos: liberdade, arte, escolha, identidade, expressão,
amor. E devido ao facto de poucas coisas acerca da Coreia do Norte serem
verificáveis (para além de imagens de satélite e de testemunhos de desertores),
isto parece ser um reino no qual o alcance imaginativo da ficção literária é o
nosso melhor instrumento para descobrir a dimensão humana de uma sociedade tão
fugidia.
Adam Johnson, autor de The Orphan Master's Son, em conversa com o editor David Ebbershoff.
Publicado pela Saída de Emergência em Janeiro de 2014 com o título Vida Roubada.
Desconcertante, audacioso e sem precedentes? Notas sem conta
transmitidas no mais curto tempo possível? Um ribombar, soltado com entusiasmo?
Isto soa a bravura pelo amor da bravura. Uma parte considerável do público agradecê-la-á
com arrebatamento. Mas o estudo Romântico apontava mais alto. Desencadeado
pelos Caprichos de Paganini, o tecnicamente novo e o nunca ouvido antes tinha de ser contrabalançado
e justificado pela novidade musical, a coragem e a poesia. A seguir ao cume que
são os estudos de Chopin, os de Schumann, Liszt e Brahms (Variações Paganini), bem como os de Debussy, Bartók e Ligeti, dão
ao pianista a possibilidade de provar que, na sua interpretação, a música leva
a melhor. O virtuosismo, a propósito, revela-se útil mesmo se não passarmos
a maior parte das nossas horas de trabalho a lidar com estudos — na verdade,
particularmente nesse caso.
Frequentemente, quando postos diante de sequências de escalas e sucessões rápidas de notas,
os intérpretes não conseguem evitar tocar mais depressa. Há uma
aceleração involuntária na interpretação de pianistas tecnicamente dotados — a
menos que a sua musicalidade lhes fiscalize os dedos. Tocar demasiado depressa
pode bem constituir um esforço físico menor do que cultivar uma disciplina que
controle cada um dos dedos.