O Mistério de Charles Dickens
O Mistério de Charles Dickens (Drood,
no original), de Dan Simmons, de que a Saída de Emergência acaba de publicar o 2.º volume, e que
tive o privilégio de traduzir, constrói-se desde o início como uma memória,
narrada na primeira pessoa, por Wilkie Collins (1824-1889), o autor de A Mulher de Branco, romance fantástico e
simultaneamente uma das obras pioneiras do género policial. Os destinatários
dessa memória somos nós, leitores de hoje, cento e vinte e cinco anos após a
morte do narrador, a quem este, à boa maneira da época, constantemente apela e
increpa, dirigindo-se-nos directamente. E a primeira questão que coloca tem
precisamente que ver com a fama literária. Collins sabe que alguns de nós
teremos ouvido falar dele, ou mesmo lido algum livro seu, mas que muitíssimos
mais conhecerão, terão lido e venerado o seu amigo Charles Dickens.
Este sentimento de injustiça e de
«inferioridade» marcará toda esta memória narrativa, e a suspeita de que esse
desnivelamento se terá perpetuado na nossa própria percepção dos dois autores
leva a que Collins se vá progressivamente zangando connosco, passando de um
amável tratamento por «Caro Leitor» a um ríspido «Leitor» ou «Leitor Infiel»,
já não caro.
Entre um e outro momento, passa
em revista os últimos anos da vida de Dickens, entre 1865, ano em que Dickens
sofre um acidente ferroviário (quando viajava com a amante e a mãe desta), e a
sua morte, em 1870, adicionando abundantes informações sobre os anos
precedentes da vida daquele autor. É a história de uma amizade íntima,
fraterna, feita de camaradagem literária e de aproximação familiar (uma das
filhas de Dickens, Katey, casara com o ilustrador Charles Collins, irmão de
Wilkie). Mas é, simultânea e paradoxalmente, a história de um progressivo
afastamento. É que, no acidente de Staplehurst, Dickens depara com um figura
espectral, Drood, que a partir daí o irá obcecar e destruir.
Não se trata aqui de mais uma
tentativa de dar solução ao romance que Dickens deixou inacabado ao morrer, O Mistério de Edwin Drood. Nada disso.
Aqui, a figura de Drood não é a personagem ficcional, mas sim a matriz dela. A
ficção da realidade por trás da ficção, portanto. Ela cria uma realidade, ou
uma irrealidade, em que a vida de Dickens se entrelaça (e não são poucas as
reflexões que O Mistério de Charles
Dickens oferece sobre as ligações entre ficção e realidade). Tal como,
aliás, a fantasia narrativa de Simmons se entrelaça, magistralmente, diga-se,
na apresentação histórico-biográfico-literária de Dickens e do próprio Wilkie
Collins.
E este é, desde logo, um dos
aspectos interessantes do livro. Ele situa-nos de forma admirável na Londres
desses anos, cobrindo-a dos tons escuros e dos cheiros nauseabundos que lhe
eram característicos, e cuja sordidez nós conhecemos precisamente através dos
romances de Dickens. Poderíamos dizer, então, que Simmons não se limita, por
intermédio de Wilkie Collins, a relatar factos da vida de Dickens, a
introduzir-nos no seu universo pessoal, mas também nos apresenta o seu universo
literário, quer através de numerosas alusões directas e análises aos seus
livros e personagens, quer através da incursão na sua geografia, na sua
paisagem e nos seus leit-motifs.
Ao mesmo tempo que Wilkie Collins
nos vai introduzindo no ambiente Dickensiano, tanto o literário como o vivido,
introduz-nos também na sua própria privacidade (na sua dupla vida amorosa, com
os seus momentos de tragicomédia, por exemplo) e nos particularismos da sua
visão do mundo, que atravessam, naturalmente, a sua própria ficção. E aqui deve
salientar-se outro aspecto deveras importante: Simmons é de uma fidelidade a
toda a prova em relação à informação biográfica sobre estes dois escritores e
amigos, que é até, algumas vezes, documentalmente apoiada. Os leitores poderão
confiar na informação, ao pormenor, sobre os hábitos, as relações, os amigos, os
locais, a família, as viagens, os desvarios, as duplicidades e segredos de um e
de outro. Aliás, essa confiança é, como o leitor do romance perceberá, absolutamente
essencial para a criação da verosimilhança da intriga romanesca entretecida nas
malhas desse real histórico.
Mas não nos poderemos esquecer
nunca de que esta é uma narrativa subjectiva e que mesmo o real histórico é
narrado do ponto de vista de uma das personagens, Wilkie Collins, e que essa
narrativa se centra (mesmo quando é Drood que ocupa o centro das atenções) na
questão do desequilíbrio entre a fama pessoal e literária de Dickens e a
menorização relativa do talento de Collins. Este tem uma enorme admiração pelo
autor que todos veneram, mas conhece também os seus segredos, os seus tiques e
manias, as suas artimanhas e as suas sombras, embora, como no fim revela: «… Deus
me ajude, amei Charles Dickens. Amei o seu riso súbito e contagiante, e as suas
absurdezes infantis, e as histórias que ele contava, e a sensação — quando se
estava com ele — de que cada instante era importante. Odiava o seu génio — esse
génio que, quando estava vivo, me eclipsava a mim e à minha obra, e o qual —
estou certo disso, Leitor Infiel — me eclipsará ainda mais no seu futuro
inalcançável».
Elias Canetti, que não tem nada
que ver com isto, escreveu uma vez que «dos superlativos emana um poder de
destruição». Ora, em ano de comemorações Dickensianas e numa época muito dada
ao superlativo fácil, este livro tem uma dimensão assaz reconfortante ao colocar
dois escritores, amigos e rivais, que nem sempre foram modelos de virtude, numa
trama que põe em confronto os lados solar e nocturno de cada um deles. E fá-lo
através de uma fantasia, cujas regras domina em absoluto, deliciosa e
minuciosamente incrustada na época e na vida de ambos. O Mistério de Charles Dickens
torna-se, assim uma indubitável homenagem de Dan Simmons a dois grandes mestres
seus e da sua arte. E uma homenagem a que não falta um extraordinário sentido
de humor.
E, de caminho, dá-nos a ver como são velhos
certos temas que hoje ainda estruturam as nossas discussões: por exemplo, a
complexa simplicidade da articulação entre a vida e a literatura, sempre
presente e sempre problemática, entre os desvarios privados e a compostura
pública, entre os fantasmagorias íntimas e a sua racionalização, entre o estilo
e a falta dele, entre a sobriedade e o delírio, entre a realidade e a
irrealidade, entre as veredas de uma literatura de intenção, programática, e a
estrada mais larga de uma escrita plástica.
Ou, ainda por exemplo, a oposição
entre a popularidade por via do número de exemplares vendidos e a popularidade
por via do prestígio do autor. Estamos na época em que os romances se
publicavam em folhetim antes da primeira impressão em livro e a sua escrita se
realizava ao ritmo de uma regular e metódica divisão em episódios. E Collins,
orgulhando-se do facto de alguns dos seus folhetins venderem mais do que os de
Dickens alguma vez tinham vendido, observa, como uma queixa, que isso não o
tornara a ele mais popular e acreditado do que Dickens.
É pois nesta tensão de amizade e
rivalidade que decorre a acção deste romance de Dan Simmons, ao longo de quase
oitocentas páginas, um precioso veículo de informação de época, da mais variada
natureza, uma homenagem muito tocante aos dois escritores e, the last but not the least, uma
envolvente teia de mistérios inquietantes (e personagens tão extraordinárias
como Dradles), com um desfecho que não se deixa antever. E não me parece nada
pouco.
Publicado no n.º13/Julho de 2012 da revista BANG!, em distribuição nas lojas FNAC.