quarta-feira, 15 de agosto de 2012

O Mistério de Charles Dickens


O Mistério de Charles Dickens (Drood, no original), de Dan Simmons, de que a Saída de Emergência acaba de publicar o 2.º volume, e que tive o privilégio de traduzir, constrói-se desde o início como uma memória, narrada na primeira pessoa, por Wilkie Collins (1824-1889), o autor de A Mulher de Branco, romance fantástico e simultaneamente uma das obras pioneiras do género policial. Os destinatários dessa memória somos nós, leitores de hoje, cento e vinte e cinco anos após a morte do narrador, a quem este, à boa maneira da época, constantemente apela e increpa, dirigindo-se-nos directamente. E a primeira questão que coloca tem precisamente que ver com a fama literária. Collins sabe que alguns de nós teremos ouvido falar dele, ou mesmo lido algum livro seu, mas que muitíssimos mais conhecerão, terão lido e venerado o seu amigo Charles Dickens.

Este sentimento de injustiça e de «inferioridade» marcará toda esta memória narrativa, e a suspeita de que esse desnivelamento se terá perpetuado na nossa própria percepção dos dois autores leva a que Collins se vá progressivamente zangando connosco, passando de um amável tratamento por «Caro Leitor» a um ríspido «Leitor» ou «Leitor Infiel», já não caro.

Entre um e outro momento, passa em revista os últimos anos da vida de Dickens, entre 1865, ano em que Dickens sofre um acidente ferroviário (quando viajava com a amante e a mãe desta), e a sua morte, em 1870, adicionando abundantes informações sobre os anos precedentes da vida daquele autor. É a história de uma amizade íntima, fraterna, feita de camaradagem literária e de aproximação familiar (uma das filhas de Dickens, Katey, casara com o ilustrador Charles Collins, irmão de Wilkie). Mas é, simultânea e paradoxalmente, a história de um progressivo afastamento. É que, no acidente de Staplehurst, Dickens depara com um figura espectral, Drood, que a partir daí o irá obcecar e destruir.

Não se trata aqui de mais uma tentativa de dar solução ao romance que Dickens deixou inacabado ao morrer, O Mistério de Edwin Drood. Nada disso. Aqui, a figura de Drood não é a personagem ficcional, mas sim a matriz dela. A ficção da realidade por trás da ficção, portanto. Ela cria uma realidade, ou uma irrealidade, em que a vida de Dickens se entrelaça (e não são poucas as reflexões que O Mistério de Charles Dickens oferece sobre as ligações entre ficção e realidade). Tal como, aliás, a fantasia narrativa de Simmons se entrelaça, magistralmente, diga-se, na apresentação histórico-biográfico-literária de Dickens e do próprio Wilkie Collins.

E este é, desde logo, um dos aspectos interessantes do livro. Ele situa-nos de forma admirável na Londres desses anos, cobrindo-a dos tons escuros e dos cheiros nauseabundos que lhe eram característicos, e cuja sordidez nós conhecemos precisamente através dos romances de Dickens. Poderíamos dizer, então, que Simmons não se limita, por intermédio de Wilkie Collins, a relatar factos da vida de Dickens, a introduzir-nos no seu universo pessoal, mas também nos apresenta o seu universo literário, quer através de numerosas alusões directas e análises aos seus livros e personagens, quer através da incursão na sua geografia, na sua paisagem e nos seus leit-motifs.

Ao mesmo tempo que Wilkie Collins nos vai introduzindo no ambiente Dickensiano, tanto o literário como o vivido, introduz-nos também na sua própria privacidade (na sua dupla vida amorosa, com os seus momentos de tragicomédia, por exemplo) e nos particularismos da sua visão do mundo, que atravessam, naturalmente, a sua própria ficção. E aqui deve salientar-se outro aspecto deveras importante: Simmons é de uma fidelidade a toda a prova em relação à informação biográfica sobre estes dois escritores e amigos, que é até, algumas vezes, documentalmente apoiada. Os leitores poderão confiar na informação, ao pormenor, sobre os hábitos, as relações, os amigos, os locais, a família, as viagens, os desvarios, as duplicidades e segredos de um e de outro. Aliás, essa confiança é, como o leitor do romance perceberá, absolutamente essencial para a criação da verosimilhança da intriga romanesca entretecida nas malhas desse real histórico.

Mas não nos poderemos esquecer nunca de que esta é uma narrativa subjectiva e que mesmo o real histórico é narrado do ponto de vista de uma das personagens, Wilkie Collins, e que essa narrativa se centra (mesmo quando é Drood que ocupa o centro das atenções) na questão do desequilíbrio entre a fama pessoal e literária de Dickens e a menorização relativa do talento de Collins. Este tem uma enorme admiração pelo autor que todos veneram, mas conhece também os seus segredos, os seus tiques e manias, as suas artimanhas e as suas sombras, embora, como no fim revela: «… Deus me ajude, amei Charles Dickens. Amei o seu riso súbito e contagiante, e as suas absurdezes infantis, e as histórias que ele contava, e a sensação — quando se estava com ele — de que cada instante era importante. Odiava o seu génio — esse génio que, quando estava vivo, me eclipsava a mim e à minha obra, e o qual — estou certo disso, Leitor Infiel — me eclipsará ainda mais no seu futuro inalcançável».

Elias Canetti, que não tem nada que ver com isto, escreveu uma vez que «dos superlativos emana um poder de destruição». Ora, em ano de comemorações Dickensianas e numa época muito dada ao superlativo fácil, este livro tem uma dimensão assaz reconfortante ao colocar dois escritores, amigos e rivais, que nem sempre foram modelos de virtude, numa trama que põe em confronto os lados solar e nocturno de cada um deles. E fá-lo através de uma fantasia, cujas regras domina em absoluto, deliciosa e minuciosamente incrustada na época e na vida de ambos. O Mistério de Charles Dickens torna-se, assim uma indubitável homenagem de Dan Simmons a dois grandes mestres seus e da sua arte. E uma homenagem a que não falta um extraordinário sentido de humor.

 E, de caminho, dá-nos a ver como são velhos certos temas que hoje ainda estruturam as nossas discussões: por exemplo, a complexa simplicidade da articulação entre a vida e a literatura, sempre presente e sempre problemática, entre os desvarios privados e a compostura pública, entre os fantasmagorias íntimas e a sua racionalização, entre o estilo e a falta dele, entre a sobriedade e o delírio, entre a realidade e a irrealidade, entre as veredas de uma literatura de intenção, programática, e a estrada mais larga de uma escrita plástica.

Ou, ainda por exemplo, a oposição entre a popularidade por via do número de exemplares vendidos e a popularidade por via do prestígio do autor. Estamos na época em que os romances se publicavam em folhetim antes da primeira impressão em livro e a sua escrita se realizava ao ritmo de uma regular e metódica divisão em episódios. E Collins, orgulhando-se do facto de alguns dos seus folhetins venderem mais do que os de Dickens alguma vez tinham vendido, observa, como uma queixa, que isso não o tornara a ele mais popular e acreditado do que Dickens.

É pois nesta tensão de amizade e rivalidade que decorre a acção deste romance de Dan Simmons, ao longo de quase oitocentas páginas, um precioso veículo de informação de época, da mais variada natureza, uma homenagem muito tocante aos dois escritores e, the last but not the least, uma envolvente teia de mistérios inquietantes (e personagens tão extraordinárias como Dradles), com um desfecho que não se deixa antever. E não me parece nada pouco.
Publicado no n.º13/Julho de 2012 da revista BANG!, em distribuição nas lojas FNAC.