domingo, 7 de agosto de 2011

Memórias Intactas

No início da década de oitenta, morei durante alguns anos num quarto alugado de um primeiro andar do Bairro Alto. A horas ou fora delas, enquanto abria a porta da rua e depois a fechava com todo o cuidado, assegurava-me de que sabia quantos eram os degraus que teria de subir e quais os degraus soltos ou os que mais rangiam, colocava a chave numa posição que me permitisse fazê-la deslizar na fechadura sem ruído, e recordava como evitar, no escuro, todos os obstáculos do meu percurso, no silêncio da noite. Num desses dias, a vizinha do segundo andar falava da sua janela para a sua congénere do prédio da frente. O tom era de confidência, que a diminuta largura da rua permitia, e percebi que falavam das respectivas filhas, procurando diferenciar os dotes de cada uma, com a natural ponta de orgulho que uma mãe sente pelo facto de a sua filha se salientar entre as demais da mesma idade e condição, sabendo também quanto há de merecimento seu nessa diferenciação. Dizia a do prédio da frente:
Pois a minha não, a minha não! É em todo o lado, tanto é na cama, como atrás da porta, no corredor, na cozinha, onde for, qualquer sítio lhe serve.