terça-feira, 26 de outubro de 2010

Memórias Intactas

Há mais de trinta anos, uma revista literária — das que, tempos a tempos, surgiam para nos lembrar que o tempo delas estava a acabar — publicou um texto que timidamente eu para lá tinha enviado. Era uma evocação e, hoje, ainda reconheço nela o alento da emoção que a ditou. Nessa altura creio que ainda não o sabia, mas fui sabendo depois que, na vida, a memória é um elemento essencial da aprendizagem. Por isso é que só aprendemos certas coisas muito tempo depois.
Era uma revista em que colaboravam diversos escritores. No número em que o meu texto foi publicado havia, entre vários outros, um artigo de Luís Forjaz Trigueiros sobre Vitorino Nemésio, um conto de António Osório, um inédito de Tomaz de Figueiredo, uma crónica de Maria Ondina Braga, um poema de Fernando Guimarães, outro de Mário Cláudio, figuras de um universo distante que me encantava. Não podia saber, então, que, muitos anos depois, teria oportunidade de conhecer e de conviver com algumas daquelas figuras.
Pela mão generosa de João Bigotte Chorão, compareci um dia numa sessão da Academia das Ciências onde era recebido o escritor francês Michel Déon — do qual, depois de lhe ter lido as obras, me pareceu escandaloso não ter sequer ouvido falar. Portugal foi sempre um país de grandes silêncios.
Quem conhecia Déon, e o apreciava, era David Mourão-Ferreira que, como só ele sabia fazer, lhe dirigiu uma saudação calorosa, um breve exercício de admiração literária em que surgiram outros nomes do mesmo universo solar da escrita: Morand, Chardonne, Valery Larbaud. Lembro-me de ter visto chegar o poeta, de sobretudo e chapéu, uma presença que era já um programa literário. Fui apresentado. O salão enchia-se de caras conhecidas e eu, tímido, era ali um estranho, um intruso. Um pouco constrangido, procurei refúgio junto do busto de Júlio Dantas. Nunca tivera intimidades com tal personagem, mas na ocasião pareceu-me o único capaz de me acolher com benevolência. Pesavam-me, porém, na consciência as diatribes que, por via de Almada, contra ele já dirigira. Mas a mudez do homem permaneceu cordial, e percebi que, tratando-se de Dantas, era apenas natural que assim fosse.
Estava eu ocupado a tentar estar ali tão discretamente que ninguém desse por mim, quando fui arrancado da sombra que o ilustre académico me oferecera por alguém que se me dirigiu com tão grande afabilidade que fiquei confundido. Era Luís Forjaz Trigueiros, decano da Academia e seu secretário. Não foram mais de dez minutos de conversa, o tempo suficiente para vislumbrar o homem civilizado e urbano, o conversador fino, o observador atento e subtil. Depois disso, apenas vi o escritor mais uma ou duas vezes. Não posso por isso dizer que o conheci. Mas evoco-o agora, dez anos após a sua morte, grato, com a emoção de quem aprendeu o valor da memória e a importância dos gestos sem importância.