quarta-feira, 22 de setembro de 2010

O poder subtil

[...] E, não obstante, Orfeu não era um herói habitual: não possuía a força de Hércules, nem a valentia de Aquiles, nem a astúcia de Ulisses, nem a sabedoria oracular de Tirésias. Era, pelo contrário, um homem frágil, suave, cujas façanhas se destacavam, não pela sua tenacidade ou violência, mas sim pela subtileza. Ninguém podia superar este poder subtil.
Disso emana o mistério de Orfeu: o seu poder brota de uma fonte que os outros heróis desconhecem. Nem mesmo os homens, modernos ou antigos, o reconheceram com exactidão. Mas a água desse manancial fala-nos de outras regiões da consciência, de outros territórios do espírito, de caminhos que estão antes daquilo a que chamamos nascimento e depois do que cremos ser a morte. Orfeu não revela a origem do caudal que o alimenta, mas, em compensação, revelou aos homens o nome desse pacífico, tempestuoso caudal eterno: a música.
A superioridade de Orfeu é este poder subtil. Com ele paralisa o inferno para resgatar a sua amada Eurídice; com ele amansa a matilha, com ele se oferece à morte e brilha no renascimento. Rilke, nos seus Sonetos a Orfeu, expô-lo de forma belamente concisa:

nnnnnnnnnnnnnnnnSó quem a lira assim
nnnnnnnnnnnnnnnnnas sombras já empunhar
nnnnnnnnnnnnnnnnpode o louvor sem fim
nnnnnnnnnnnnnnnnpressentindo entoar.
nnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnn(trad. de Vasco Graça Moura)

Rafael Argullol, Enciclopedia del crepúsculo, Acantilado, Barcelona, 2005.