quinta-feira, 21 de julho de 2011

Memórias Intactas

Pertenço a uma geração que, na adolescência, ainda leu e se emocionou com o «Cântico Negro» (e com a «Toada de Portalegre»), de José Régio, dito com o veemente rasgo declamatório de Villaret. Esse rasgo contribuiu para banalizar o poema e à banalização seguiu-se o banimento, precedido pela condenação da retórica grandiloquente e do dramatismo de efeito (é claro que também teve que ver com a menorização ideológica da estética presencista e do próprio Régio, entre outras coisas). A poesia deixou – para o bem e para o mal  de ser declamada para ser dita. As selectas e as colectâneas literárias foram substituídas por manuais em que as ilustrações e os comentários tomaram o lugar dos textos. Se outra razão não houvesse, o espaço bastaria para determinar o desaparecimento do «Cântico Negro» do imaginário das mentes educandas. Poderia dizer-se o mesmo da «Tabacaria» de Fernando Pessoa, mas Pessoa teve outra fortuna e impôs outra presença. Julgo que, se ainda fizesse parte do cânone, o «Cântico Negro», por razões intrínsecas, ainda despertaria – ou ainda faria descobrir emoções e talvez produzisse uma outra consideração pela poesia (comprovei-o com os meus alunos, em meados dos anos oitenta). Pessoalmente, o «sei que não vou por aí» ainda me arrepia, mas há muito que já não me convoca. Curiosamente, o verso de «Cântigo Negro» que mais retive na memória e que frequentemente me ocorre é «e vós amais o que é fácil», que transformo para meu uso em «vós, que amais o que é fácil».