Memórias Intactas (5 de 7)
De São Marcos, conheço duas Anunciações a fresco de Fra Angelico. Uma delas foi pintada no interior de uma das celas (c. 1441-1443), e a cena está representada num espaço quase fechado, despido de ornamentação, permitindo fazer convergir toda a atenção nas figuras etéreas do Anjo e da Virgem, ou, talvez melhor, na relação entre ambas. O despojamento é mais profundo do que em pintores um pouco anteriores, como Lorenzo Monaco, e está longe da tradição representada, por exemplo, por Robert Campin, que apresenta a Virgem a ler, no interior de uma sala profusamente decorada (c. 1425). O livro parece ter servido desde sempre para acentuar o inesperado da visita do Anjo, a interrupção da leitura despreocupada, e, ao mesmo tempo, revela a natureza recolhida de Maria: mas no pintor flamengo é mais do que uma simples nota, é o próprio cerne da cena doméstica. A dramaticidade perde-se em favor do cenário, enquanto na tábua de Monaco (c. 1410), pintada para um retábulo, o conteúdo da narrativa bíblica concentra-se na fisionomia das personagens.
Entre elas há, porém, diferenças que transcendem as de carácter decorativo, simbólico ou catequético. No fresco do corredor do Convento de São Marcos, o Anjo anunciador já tem a postura reverente que está ausente do fresco da cela. O Espírito Santo não está representado. A Virgem escuta, paciente. Apenas um imperceptível alarme passa no seu olhar. Nada que se pareça com a viva retracção de Maria, apesar do ramo de oliveira que o Anjo Gabriel lhe apresenta, na Anunciação do retábulo da Catedral de Siena (1333) atribuído a Simone Martini. [continua]