quarta-feira, 27 de julho de 2011

As fidelidades electivas


Recordo-me de um dia, no intervalo de um congresso, Gilberto Mendonça Teles se ter lamentado por ter tido de escutar outras intervenções, na mesa, sem lápis ou caneta com que rabiscar. É que, explicou, à volta de uma palavra ouvida ou lembrada por vezes se ata outra e nesta um verso hipotético pedindo ao poeta que outros nele se entrelacem ou encavalitem, pois quem sabe se mais tarde, passado o crivo do tempo, eles levam ao poema.
Este episódio sempre me pareceu emblemático da fidelidade de Gilberto à palavra. À palavra física, a falavra, diz ele, repleta de sucos, sons e evocações, e ao que por dentro nela lavra e que é larva, digo eu, estado primeiro, ponto de partida das metamorfoses do sentido e do contágio dos sentidos.
Nesta fidelidade à palavra há toda uma humildade que simultaneamente contém uma disposição paciente e oficinal e uma vertigem avassalante, ambas se confundindo sob a batuta astuta do Poeta, que não se furta à luta e ora é senhor ora é servo, mas sempre fiel à sua condição.
A palavra trina – isco, anzol e presa: eis como tudo se passa entre o professor, o crítico e o poeta.
Fidelidade à palavra («Tudo em mim é desejo de linguagem») que é no mesmo passo centro e limiar, polpa e pele, miolo e côdea, fronteira entre aquém e além, alvorada e crepúsculo, libertação e vício, que é habitação e habitante. E é nome, palavra-moradia, com suas exigências de clausura, modo de vida, rendição, e riso e sorriso também.
Fidelidade à palavra que congrega, segrega, e sobretudo agrega o passado do futuro ao presente da memória, a experiência ao experimento, o viso ao improviso, o órgão à volúpia.
O texto integral de «As Fidelidades Electivas» está publicado em As Artes Entre As Letras (Porto, 13 de Julho de 2007).