sábado, 16 de outubro de 2010

Sinopse de uma fábula (segunda parte)

Dois dias depois conseguiu-se, por fim, estabelecer o contacto com o interior da mina. Depois de se ter procedido a uma contagem e de se ter confirmado que todos estavam bem, tanto quanto possível, foram introduzidos, por um canal aberto para o efeito, os primeiros alimentos, água e alguns medicamentos.

Porém, a primeira mensagem do Governante a chegar à superfície traía alguma impaciência: quando haveria possibilidade de fazer chegar uma câmara de filmar lá abaixo? Não se podia, escrevera o Governante pelo seu próprio punho, perder o país de vista. Era uma exigência das sociedades modernas e democráticas. Era essencial virar a política para o exterior. Não se podia perder o país de vista.

Mais tarde, enquanto se coordenavam esforços para uma acção de resgate com o mesmo nível de impacto da do Chile (com mais impacto, caramba, afinal de contas tratava-se de um governo inteiro!), o Conselho reuniu de emergência, formando-se um Gabinete de Crise restrito, coordenado pelo próprio Governante.

Foi decidido agradecer, mas não aceitar, a ajuda oferecida pelos Chilenos, admitindo-se embora a vinda de um elemento da equipa de resgate como observador, dando-se prioridade ao know how e à tecnologia nacionais. Tal não impediu, no entanto, que um subsecretário de Estado à superfície tivesse conduzido negociações discretas com o país vizinho.

Oito dias depois, sem câmara de filmar, os ministros procuravam poupar o que restava das baterias dos blackberries, para poderem pelo menos usar a função de calculadora, pois as contas eram o passatempo favorito de alguns deles.

Um dia chegou, algumas semanas depois, em que as operações de resgate estavam, não a iniciar-se, mas quase a iniciar-se. E, embora ninguém soubesse exactamente o que isto significava exactamente, uma ideia começou a dominar os espíritos ministeriais: se chegassem a sair, qual seria a ordem de saída?

O Governante sentia os olhares convergirem nele. Fechou-se em copas durante algum tempo, que muitos classificaram intimamente como uma larga hesitação, e então disse: O primeiro a sair, assim queira Santa Bárbara, padroeira dos mineiros, será o Ministro dos assuntos parlamentares. É, antes de mais, um acto simbólico de respeito pelo Parlamento e vai agradar aos deputados. Compreendam bem o alcance da minha visão estratégica. Vai cair bem. Ora digam lá se é ou não bem pensado?

Houve um murmúrio de aprovação, que poderá ter sido apenas um murmúrio correspondente apenas à necessidade de quebrar o silêncio.

A seguir parece-me que deveria ir o senhor Ministro das finanças, disse a Ministra da saúde, decerto a pensar no seu ministério.

O Governante engoliu em seco. Depois olhou para o seu duplo, o Ministro da presidência, que já mandara descer duas gravatas iguais para o dia da saída, e que ficou impassível, e depois para o Ministro da defesa, que fingiu não ter visto.

Hesitou durante alguns segundos e, por fim, com o timbre a altura de um final de discurso, disse: Claro! Mas claro, evidentemente, como poderia ser de outra maneira?

Aguardou pela vaga de fundo.

Mas eu é que sou da tutela dos mineiros, não sou? disse timidamente a Ministra do trabalho.

Tu telas, ele tela, nós telamos. Está mas é caladinha e organiza as vinte e quatro horas do teu dia com outras coisas, sussurrou a Ministra da educação, que acabara de firmar contrato para o próximo livro, Aventura no Fundo da Mina, com uma cláusula de sexo e violência, a ser publicado em papel, e-book e dvd contendo uma narração ao vivo.

E que tal um combóio subterrâneo daqui ao Poceirão? perguntou com ar sonhador o Ministro das obras.

Pois, era bom, para os mais desfavorecidos poderem ir ver o tgv, lembrou-se o Ministro da justiça.

E isso vale quantos submarinos? perguntou, algo céptico, o Ministro das finanças.

O que precisávamos era de um milagre no Poceirão, subsidiávamos a construção de um santuário, disse um Ministro, de tal modo que ninguém percebeu quem foi.

Começou a gerar-se confusão, todos começaram a falar ao mesmo tempo. Algumas palavras soltas esvoaçavam, zumbindo, em volta dos capacetes, enquanto outra eram atiradas como pedradas, ficando a pairar, sombrias, no ar escasso.

O Governante tomou a palavra, mas teria bastado o brilho do olhar para pôr termo à discussão. Na sua voz vibrante vislumbrava-se o golpe de asa, a intuição genial.

Sai o MAP, depois o MF, e os outros tiram à sorte. Eu serei o último. Todos poderão ver a coragem do Governante. Serei como o capitão do navio naufragado. Isto ainda pode resultar. Aliás, politicamente, é de mestre, terão de reconhecer. À saída terei todo o G20 à minha espera. Já pensaram no impacto de uma coisa destas? Isto vai arrasar. É preciso mandar, ...aaa, pedir já para a comunicação social preparar a opinião pública. Vai ser.... já imaginaram.... saio daqui em ombros. O país levar-me-á em ombros, e sentirá o meu peso. Vou ser o último. Ficarei aqui sozinho e serei o último. Isto vai cair bem.

Quando o Governante se calou, ofegante, reinava um verdadeiro silêncio tumular na galeria. Os ministros entreolharam-se e nos seus rostos esboçou-se um mesmo sorriso, enigmático, malicioso, que, dentro de cada um deles, soou como uma gargalhada sardónica e sinistra.

(fim)

*Quaisquer semelhança com pessoas ou factos reais é pura coincidência.