quarta-feira, 16 de junho de 2010

Memórias Intactas

Assentei praça em Beja como os magalas de Manuel da Fonseca. E dos lados de Beja vim para o meio de Lisboa como Álvaro de Campos, quando num livro abandonado em viagem escreveu «fui, como ervas, e não me arrancaram.». Apesar da patente rasteira, trazia na bagagem um louvor onirista, anunciado e lido pelo tenente Afonso nos fundos da ilustre adega do Ramires, em solenidade selada por vinho novo, definitivamente me nomeando «soldado de fino trato».
Chegado, limpei latrinas, perfilei-me à porta-de-armas, vigiei a frialdade de noites ocas, deslizei pela imundície húmida das cozinhas, fui enfim, mais tarde, colocado numa biblioteca, feliz coroamento da minha carreira militar, com a missão de renovar o ficheiro. Diligentemente, à máquina de escrever, pus-me a recopiar as fichas cobertas de uma cera de sujidade, de caminho limpando-as dos erros abundantíssimos. O velho sargento que comandava a nave dos livros admoestou-me com irritação: «enquanto eu mandar, far-se-á o que eu disser, e eu mandei copiar as fichas! Uma vaca, mesmo que seja um cavalo, será uma vaca se eu o disser. Nada de invenções.»